Artículos
Eli Borges Junior 1
1 0000-0002-0937-4741. Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil, Atopos International Research Center-Universidade de São Paulo, Brasil.
ridolfi.eli@gmail.com
Recebido: 04/08/2023
Submetido a pares: 17/10/2023
Aceito por pares: 19/02/2024
Aprovado: 20/02/2024
Para citar este artículo / to reference this article / para citar este artigo:Borges Junior, E. (2024). A inteligência artificial seria mesmo artificial? Uma releitura do conceito de inteligência a partir das noções de extensão e de conectividade. Palabra Clave, 27(1), e27111. https://doi.org/10.5294/pacla.2024.27.1.11
Resumo
Este artigo pretende apresentar uma crítica da expressão "inteligência artificial" (IA), apontando-lhe possíveis inadequações e aporias. Para isso, dedica-se a algumas possibilidades de releitura da IA a partir da noção de "extensão humana" de M. McLuhan e, sobretudo, da ideia de "conectividade" de M. Di Felice, aqui concebida como a capacidade de entes humanos e não humanos de estabelecer conexões em um dado ecossistema. Partindo dessa leitura, no âmbito de tecnologias estocásticas como o ChatGPT, um sistema inteligente seria aquele capaz de ampliar suas conexões e, com isso, de transformar-se continuamente: assim, em vez de ruídos ou focos de instabilidade, as mudanças geradas por novas conexões atuariam como elementos decisivos e mesmo necessários ao próprio aprendizado do sistema.
Palavras-chave: Inteligência artificial; algoritmos; inteligência; ChatGPT; ecologia das mídias.
Resumen
El artículo pretende presentar una crítica de la expresión "inteligencia artificial" (IA), señalando posibles insuficiencias y aporías. Para ello, se dedica a algunas posibilidades de releer la IA desde la noción de "extensión humana" de M. McLuhan y, sobre todo, la idea de "conectividad" de M. Di Felice, aquí concebida como la capacidad de elementos humanos y no humanos para establecer conexiones en un ecosistema determinado. A partir de esta lectura, en el contexto de tecnologías estocásticas como ChatGPT, un sistema inteligente sería aquel capaz de expandir sus conexiones y, por tanto, transformarse continuamente: así, en lugar de ruidos o fuentes de inestabilidad, los cambios generados por nuevas conexiones actuarían como aspectos decisivos e incluso necesarios para el propio aprendizaje del sistema.
Palabra clave: Inteligencia artificial; algoritmos; inteligencia; ChatGPT; ecología de los medios.
Abstract
This paper aims to present a critique of the expression artificial intelligence (AI), pointing out possible inadequacies and aporias. For this, it considers some possibilities of rereading AI from the notion of human extension (M. McLuhan) and, above all, the idea of connectivity (M. Di Felice), here conceived as the ability of human and non-human elements to establish connections in an ecosystem. From this perspective, in the context of stochastic technologies such as ChatGPT, an intelligent system would be capable of expanding its connections and, therefore, continuously transforming itself: thus, instead of noise or sources of instability, the changes generated by new connections would act as decisive and even necessary elements for the system's learning.
Keywords: Artificial intelligence; algorithms; intelligence; ChatGPT; media ecology.
Introdução: em busca do impensado em McLuhan
Na introdução de seus Prolegómenos a toda metafísica futura, I. Kant (1988 [1783]) reconheceria que sua obra teria como uma de suas pretensões fundamentais explorar alguns elementos impensados pela filosofia de D. Hume. Esse impensado, ao mesmo tempo que não se anunciava pela própria pena do filósofo britânico, estaria ali subscrito como "a primeira centelha" de uma "luz", algo que o próprio Hume não teria tido condições de fazer aparecer, mas que, na reflexão de Kant, já encontraria ocasião intelectual para se manifestar (Kant, 1988 [1783], p. 17).
O presente artigo poderia eleger tal ideia de Kant como ponto de partida: pretendemos aqui realizar uma espécie de crítica da expressão "inteligência artificial" (IA), sobretudo a partir daquilo "impensado" por McLuhan. O objetivo é fazer florescer, em nosso tempo, pistas deixadas pelo professor canadense ao pensar os media para além do espectro da transmissão de mensagens, como elementos que, ao prolongarem o "sensório humano", possibilitariam "novos sistemas de relações entre os sentidos", reconfigurando as próprias bases da "ecologia cultural" (McLuhan, 1972, p. 63). Baseando-nos em uma investigação de doutorado dedicada ao tema dos algoritmos e suas implicações sobre o modus percipiendi contemporâneo (Borges Junior, 2023), o artigo busca aproximar elementos do debate sobre a IA aos estudos de media ecology, identificando, nesse percurso, possíveis pontos de correspondência e problematização.
O texto está organizado em três partes. A primeira é dedicada a uma reflexão sobre a pertinência da expressão "inteligência artificial". A uma análise sobre possíveis denominações da IA, reunimos uma reflexão etimológica acerca dos termos "inteligência" e "artificial". Isso nos permite, prima facie, reconhecer uma clara dualidade em que a noção de "artificialidade" se firma em oposição àquela de "naturalidade", identificando os dispositivos tecnológicos em questão como dotados de uma pretensa capacidade de aprendizagem ontologicamente diversa àquela do cérebro humano. Essa separação das dimensões humana e não humana e a impossibilidade, a partir dos expedientes próprios à matriz epistêmica ocidental, de atribuir agência a esses tipos outros de inteligência acabariam revelando uma visão dos dispositivos de IA que os concebe, fundamentalmente, como "instrumentos", "ferramentas", "meios" peremptoriamente vinculados a — e dependentes de — certos fins. O problema lexical da expressão ofereceria, por sua vez, certos entraves a uma compreensão mais ampla do significado das tecnologias caracterizadas por essa denominação.
Na segunda parte do artigo, buscamos demonstrar em que medida a noção de "extensão" em McLuhan (1964) poderia operar como proposição de um outro tipo de inteligência, resultante de uma integração entre o que hoje separamos em "inteligência humana" e "IA". Se, em um primeiro exame, poderíamos ser levados a ler o termo "extensão" como algo à parte, acessório ou acoplado a um corpo humano — afirmando, com isso, uma medialidade pressuposta pelo termo e uma consequente centralidade do elemento humano —, em um segundo momento, poderíamos recorrer a outra acepção dessa palavra. Do latim medieval, "extensão" pode também ser lida como aquilo que, reunindo a partícula "ex" a "tension", "faz tensão para fora", isto é, que explode limites, que visa ao exterior, rompendo fronteiras. Isso nos levaria a reconhecer a ideia de "extensão" como uma reconfiguração do próprio elemento humano, na qual esse, ao se relacionar com outros tipos de inteligências, transformar-se-ia por inteiro em uma espécie de simbiose com o elemento tecnológico.
Essa ideia nos conduz à terceira parte do artigo, na qual exploramos a hipótese de que a chamada "inteligência artificial" seria, nessa acepção anterior, não só a "extensão" de uma pretensa "inteligência humana" como também poderíamos pensar a própria "inteligência humana" como "extensão" de outras formas de inteligência — o que nos conduz, por exemplo, aos estudos de E. Coccia (2016) sobre a vida das plantas e às reflexões de D. Haraway (2005) sobre inteligência animal. Assim, o próprio conceito de "artificial" pode ser problematizado se pensamos na ideia de inteligência — como propõe M. Di Felice (2023) — "não apenas como um produto autopoiético do indivíduo", exclusivo da subjetividade e da intelecção humanas (p. 47), mas construído a partir da conectividade entre elementos de variadas naturezas. Essa perspectiva poderia ser entrevista, como assevera Di Felice, desde a cibernética de segunda ordem até a noção, recentemente apresentada por J. Lovelock (2020), de "hiperinteligência".
Aliado às três partes expostas, pretendemos, apenas a título de exemplo, apresentar uma breve análise sobre a arquitetura estocástica do ChatGPT a partir dessa visão ampliada de inteligência. O software parece não só significar um produtor de textos em formatos e construções discursivas nunca antes oferecidos, mas atuaria como elemento que, conectado em um verdadeiro ecossistema, acabaria por alterar — recordando McLuhan — a própria "ecologia cultural" da escrita e da leitura. Todo esse percurso pretende, a partir dos autores apresentados, oferecer contribuições ao campo de discussões da media ecology, reforçando — a partir da noção de inteligência como "conectividade" proposta por Di Felice (2023)1 e como oportunamente destaca O. Islas (2015) — o caráter "metadisciplinar" dessa área de estudos.
Sobre a pertinência da expressão "inteligência artificial"
Comecemos, então, refletindo sobre a expressão "inteligência artificial". O emprego dos termos tornar-se-ia, de fato, pronunciado a partir de meados do século 20, depois de aparecer pela primeira vez no âmbito de uma proposta acadêmica: tratava-se da Conferência de Dartmouth, quando, em 1955, reuniram-se, entre outros nomes importantes, J. McCarthy, do Dartmouth College, M. L. Minsky, da Universidade de Harvard, N. Rochester, da I.B.M. Corporation, e C. E. Shannon, dos Bell Telephone Laboratories, todos eles especialistas em temas que integravam aquilo que posteriormente seria definido como IA.
O resultado mais importante da reunião foi a proposta de realização de um workshop durante o verão do ano seguinte com o objetivo de investigar novas possibilidades de construção de thinking machines ("máquinas pensantes"), para além daquilo que a "teoria dos autômatos" (Hopcroft et al., 2001; Minsky, 1967) e as abordagens da própria cibernética (Wiener, 1961 [1948]; 1950) já permitiam. É, no espírito desse projeto, que os pesquisadores partiram da seguinte premissa, a qual também poderia ser lida como uma primeira definição de "inteligência artificial": "O estudo deve prosseguir com base na conjectura de que todo aspecto do aprendizado ou qualquer outra característica da inteligência pode, em princípio, ser descrito com tanta precisão que uma máquina pode ser feita para simulá-lo"2 (McCarthy et al., 2006, p. 14).
Há, no mínimo, dois pontos dessa premissa sobre os quais poderíamos nos deter com mais atenção. O primeiro é aquele que se lança a compreender um amplo enquadramento dado tanto pela expressão "todo aspecto do aprendizado" como por "qualquer outra característica da inteligência". Com efeito, diante dessa abordagem universalizadora, seria praticamente impossível escapar a uma pergunta fundamental, que, no entanto, não seria problematizada, ao menos no mesmo documento: o que se entende por "aprendizado" ou por "inteligência"? O que, então, nesse sentido, poderia "ser descrito com tanta precisão que uma máquina pode ser feita para simulá-lo"?
Não seria hiperbólico admitir que, nas entrelinhas dessa tentativa de definição, é possível encontrar o que chamamos aqui de uma "atitude de cálculo", posicionamento que, ao mesmo tempo, buscaria identificar com propriedade o resultado implicado no aprendizado ou na inteligência e desdobrá-lo em partes ("analisá-lo"), com uma precisão tal que possa ser assimilado — e do mesmo modo identificado — por um ente de natureza distinta àquela humana. Há, portanto, aqui duas operações pressupostas: a de definição do que seria uma ação inteligente e a decomposição e assimilação de suas partes a fim de que seja, posteriormente, reproduzida por uma máquina. Mutatis mutandis, essa ideia parece sobreviver em definições mais recentes de IA, como esta de M. Boden (2020):
A Inteligência Artificial (IA) procura preparar os computadores para fazer o tipo de coisas que a mente é capaz de fazer. Algumas dessas coisas (como o raciocínio) são definidas normalmente como "inteligentes". Outras (a visão, por exemplo), não. Mas todas envolvem habilidades psicológicas — percepção, associação, previsão, planejamento, controle motor — que permitem que os seres humanos e os animais alcancem seus objetivos. (p. 13)
Ou mesmo reaparece nesta formulação seguinte, de N. Nilsson (2009), que admite a inteligência como algo capaz de ser avaliado ou comparado dentro de uma espécie de escala, determinada pela qualidade dos efeitos oferecidos:
A inteligência artificial é aquela atividade dedicada a tornar as máquinas inteligentes, e a inteligência é aquela qualidade que permite que uma entidade funcione apropriadamente e com previsão em seu ambiente. De acordo com essa definição, muitas coisas — humanos, animais e algumas máquinas — são inteligentes. Máquinas, como "cameras inteligentes", e muitos animais estão no extremo primitivo do continuum estendido ao longo do qual entidades com vários graus de inteligência estão dispostas.3 (p. 130)
O que se pode depreender de definições como essas é um esforço comparativo, diante do qual arriscaríamos postular que o conceito de IA trabalharia com duas abstrações: a dos efeitos alcançados e a da origem desses efeitos. A primeira delas, que se concentra sobre os resultados oferecidos e a qualidade desses últimos, é uma abstração porque não se trata de algo que pode ser patentemente verificado, mas, antes disso, deve ser definido segundo critérios comuns: em outras palavras, aquilo considerado como ação inteligente é, em última instância, arbitrário.
Isso significa reconhecer que tais efeitos são "calculados", ou seja, transformados em "dados" cuja natureza comum lhes permita ser computados e comparados. Assim, por exemplo, só podemos cotejar dois textos, sendo um produzido por "inteligência humana" e outro gerado por "IA" — como o ChatGPT —, se definimos muito bem o que seria um "bom" texto ou um conteúdo "apropriado". Essa qualificação é definida conforme certos critérios que de algum modo mensurem ou classifiquem seus níveis de clareza e coerência, as articulações entre seus elementos coesivos e suas construções sintáticas, o uso de termos menos ordinários e mais sofisticados, ou mesmo sua riqueza argumentativa — por exemplo, a partir do uso de citações confiáveis e obras de referência —, além de vários outros. Tudo isso, em última instância, não deixa de ser arbitrário e o recurso aos adjetivos "bom" e "apropriado", anteriormente citados, somente torna ainda mais evidente a dimensão abstrata do que se define por "inteligência".
Da mesma maneira que essa palavra é definida pela "precisão" e pela "sofisticação" desses efeitos, a outra abstração, por seu turno, concerne à origem desses efeitos. Abstração porque se parte aqui de uma categorização, em última medida também arbitrária, sobre o ponto do qual irromperia tal ação inteligente: se gerada por uma "fonte" natural ou se "forjada" — e aqui as significações opostas do adjetivo caberiam muito bem — por um ente não natural. De algum modo, quando definimos algo como "IA", é a essa abstração que recorremos.
Podemos percebê-lo a partir da própria etimologia do termo "artificial". Do latim, "artificiale" denota algo produzido pelo ser humano e que, portanto, não apareceria "naturalmente": deriva de artificium, por sua vez decorrente de artifex, aquele investido de uma habilidade específica (de ars, ou "arte", efex, defacere, ou "fazer" [Collins, 2012, s.p.]). "Artificial" é, portanto, aquilo que é feito e que só apareceria por conta de uma operação não natural, uma vez que não poderia ser encontrado já feito, pronto ou acabado no âmbito daquilo naturalmente oferecido a nós pelo mundo.
Esses sentidos do termo "artificial" nos ajudam a compreender acepções a partir das quais assumiria significados como aquilo "feito à imitação de um produto natural, especialmente como substituto; não genuíno [...]; fingido; presumido; insincero [...]; carente de espontaneidade" (Collins, 2012, s.p.). Uma inteligência seria, então, descrita como "artificial" porque ofereceria certos resultados cuja pretensa origem não seria "natural": tratar-se-ia, assim, de algo não espontâneo, mas "produzido", algo não genuíno e, em última instância, não verdadeiro.
Ora, o que ambas as abstrações nos revelam são as dimensões aporéticas da própria expressão em jogo. Se explorada em sua radicalidade, a designação "inteligência artificial" apresenta pontos críticos substantivos. Por um lado, constatamos que certas tarefas até pouco tempo caracterizadas como singularmente humanas (por exemplo, elaborar um discurso de modo suficientemente sofisticado a ponto de insinuar até mesmo uma verve criativa) — podem hoje ser operacionalizadas por tecnologias de deep learning, inclusive — em certos casos — com resultados muito superiores, capazes de nos confundir completamente sobre sua verdadeira origem.
Por outro lado, percebemos que talvez não sejamos tão "humanos" como pensávamos, já que a crítica do conceito de inteligência nos permite vislumbrar que talvez não haja um ponto de origem de nossa inteligência e, portanto, que talvez essa não seja, de fato, tão "espontânea" como até agora concebemos: o que definimos até hoje como "natural", por conta de uma pressuposta "origem natural", talvez não o seja: ou porque não teria, de fato, uma "origem", ou porque talvez envolva várias origens ao mesmo tempo. Ambas as acepções — a impossibilidade de um foco originário ou uma origem difusa da inteligência — acabam por inviabilizar a expressão "inteligência artificial", que não nos permite trabalhar para além daquilo que pressupõe seu princípio fundamental, qual seja, a dicotomia "naturalidade versus artificialidade". Como afirmar que se trata de uma capacidade de aprendizagem ontologicamente diversa àquela do cérebro humano se não poderíamos — ao menos, ainda — sequer identificar ou descrever, de modo claro e distinto, o que é a inteligência no contexto de nossos próprios mecanismos neurais? O mero critério da "humanidade", se visto a partir de um espectro mais profundo, parece não nos oferecer uma raiz que poderia sustentá-lo.
Em última análise, grande parcela da confusão que o uso do termo nos aporta constitui, justamente, parte de um problema de natureza lexical: o imbróglio procede do fato de equivalermos aquilo alcançado por nosso cérebro àquilo efetuado pelos computadores, quando, talvez, ainda que os últimos ofereçam resultados, aos nossos olhos, equivalentes, acabem por lidar com algo bastante diverso e, por isso, que necessite de outros nomes e caracterizações. Assim, o que hoje denominamos "inteligência 'artificial'" — na ausência, até agora, de outro termo mais adequado — talvez não seja "cópia", "simulacro", "substituta" ou imitação de algo realizado "espontaneamente", mas sim ente ou entidade diversa, nem completamente equivalente, nem completamente distinta daquilo a que hoje é comparada. Talvez tenhamos que, nesse sentido e efetivamente, pôr em prática o desafiador exercício da relativização levando a cabo uma tarefa inversa à da "purificação" dos modernos (Latour, 1991, p. 21) e em direção àquela da complexidade (Morin e Le Moigne, 1999), na tentativa de pensar as coisas e os fenômenos do mundo para além das perspectivas reducionistas e simplificadoras das dicotomias.
Não se trata, no entanto, apenas de uma imprecisão conceitual. Ao fim, o problema lexical da expressão implica entraves a uma compreensão mais ampla do significado das tecnologias caracterizadas pela denominação "artificial". A separação das dimensões humana e não humana e a impossibilidade de atribuir agência a esses tipos outros de inteligência acabaria revelando uma visão instrumental acerca dos dispositivos de IA, como meras "ferramentas" ou "meios" cuja função é fornecer "soluções" a problemas cotidianos. É imperativo que nos lancemos a uma redescrição desses novos fenômenos e condições tecnológicos alinhavada pelas singularidades de outros olhares e perspectivas e, com isso, reconhecer que o mundo não prescinde do humano para existir. Urge pensar essas tecnologias para além de uma análise que acabe por considerar sempre o elemento humano, ao fim e ao cabo, como ponto de partida ou ponto de chegada4.
A IA seria uma "extensão" da inteligência humana?
Que implicações tal reflexão sobre o conceito de IA teria, então, para as interpretações que concebem essas tecnologias como "extensões" humanas? Em outras palavras, em que medida o termo notavelmente empregado por M. McLuhan contribui para reforçar ou sanar o dilema lexical anteriormente posto?
O primeiro ponto a ser considerado concerne à própria definição da palavra "extensão". De fato, a polissemia do termo é tal que poderia nos convidar a leituras distintas e mesmo opostas. Revigorando a acepção latina medieval de extensio (extensïo, -anis Lewis e Short, 1879]), temos o sentido de "alongamento", o que reaparece na maioria dos significados apontados pelo preciso acervo de definições do Centre Nationale de Ressources Textuelles et Lexicales (CNRTL); ali verificamos:
Ação de estender, de se estender; resultado dessa ação. [...] Ação de aumentar, de se aumentar; de ganhar mais importância, de se expandir. [... ] Ação de dar a algo mais amplitude, de abranger um maior número de elementos. [...] Prolongamento; ação de prolongar longitudinalmente; aquilo pelo que se prolonga uma coisa; o que prolonga a parte principal de um corpo.5 (s.d., s.p.)
Ainda que seja possível identificar algumas diferenças, parece predominar nesse conjunto a noção de "ampliação" de uma condição inicial, espécie de "prolongamento" que mantém características já verificadas, sem dar a compreender necessariamente a sua reformulação. É o que nos permitiria interpretar uma "extensão humana" como aquilo que, fundamentalmente, aperfeiçoa características humanas já existentes, mantendo-lhes os princípios fundamentais. "Extensão" apareceria aqui sob a chave daquilo que complementa, que alarga, portanto, em um papel ainda subsidiário e acessório a um estado de coisas inicial e fundamental.
É possível, entretanto, reler a palavra a partir de uma outra abordagem. "Extensão", reunindo do latim medieval a partícula "ex" a "tension", pode também ser lida como aquilo que "faz tensão para fora", o que nos é sugerido, por exemplo, a partir de definições como "ação de alongar, extensão; ação de espalhar, difusão; explosão"6 (Gaffiot, 1934, p. 640). O termo aqui se reconfigura a partir da ideia daquilo que, ao tensionar e visar ao exterior, "explode" limites, desestabilizando, portanto, uma definição ou condição inicial: não se trata, nesse sentido, de um mero "prolongamento" ou uma simples "expansão", mas de uma redefinição do que se verificava antes da própria extensão.
Essa distinção é importante principalmente no âmbito acadêmico — em especial aquele de formação básica —, em que, no estudo da obra de McLuhan, não é raro deparar-se com um discurso que interpreta "extensão" a partir dessa primeira chave. De fato, em certas passagens, o emprego do termo pode sugerir um sentido mais restrito, congruente à perspectiva do acréscimo, da ampliação de efeitos originários, os quais seriam potencializados a partir de uma espécie de soma provocada pelo acoplamento dos novos recursos tecnológicos. É o que poderíamos entrever, por exemplo, quando o professor canadense (McLuhan, 2020) afirma que:
A ecologia cultural tem uma base razoavelmente estável no sensório humano, e toda extensão do sensório através da dilatação tecnológica tem sempre um efeito de notável importância no realizar novas relações ou proporções entre os sentidos (pp. 44-45). [...] Os homens vivem sua vida mais íntima tal como modificada involuntariamente por alguma extensão tecnológica de seus sentidos internos. [...] As consequências individuais e sociais de cada meio, isto é, de toda extensão humana, derivam das novas proporções introduzidas nas pessoas por cada uma dessas extensões (p. 67). [...] Os seres humanos estão sujeitos ao fascínio imediato de cada extensão de si, reproduzido em um material diferente daquele de que são feitos (p. 82). [...] O rádio é uma extensão do sistema nervoso humano particularmente sintonizado com a primeira extensão, que é a língua falada. (p. 91; grifos nossos)
Se, por um lado, a primeira possibilidade de leitura do termo "extensão" implica uma noção mais limitada, que atribui àquilo que estende uma função eminentemente subsidiária, expansora ou mesmo "dilatadora" de efeitos já existentes, a segunda abordagem oferece-nos uma definição mais complexa, na qual as tecnologias não somente "ampliariam" aquilo que nosso corpo é capaz de sentir, perceber ou pensar, mas, muito mais do que isso, modificariam os próprios significados dessas ações. Parece-nos, a propósito, que esse ponto é fundamental a uma compreensão mais acertada do que significam as noções de "ecologia" e de "ambiente" na obra mcluhaniana: assim, as tecnologias elétricas não apenas alargariam as capacidades de nossos sentidos, mas também inaugurariam modos outros de perceber e sentir a própria realidade. É, pois, essa segunda abordagem que parece, de fato, alcançar o pensamento do autor de understanding media, como podemos observar, sobretudo, nos seguintes excertos:
Na era da mecânica, operamos uma extensão do nosso corpo em um sentido espacial; hoje, estendemos nosso próprio sistema nervoso central em um abraço global que abole tempo e espaço (McLuhan, 2020, p. 163). [...] Estamos aproximando-nos rapidamente da fase final da extensão humana: aquela em que o processo criativo do conhecimento será coletivamente estendido a toda a sociedade humana. (p. 167; grifos nossos)
Ou ainda, de modo mais completo:
Qualquer invenção ou tecnologia é uma extensão ou auto-amputação de nosso corpo, e essa extensão exige novas relações e equilíbrios entre os demais órgãos e extensões do corpo. Assim, não há meio de recusarmo-nos a ceder às novas relações sensórias ou ao "fechamento" de sentidos provocado pela imagem da televisão. Mas o efeito do ingresso da imagem da televisão variará de cultura a cultura, dependente das relações sensórias existentes em cada cultura. Na Europa tátil, visual, a TV intensificou o sentido visual, forçando-a em direção aos estilos americanos de acondicionamento e vestuário. Na América, cultura intensamente visual, a televisão abriu as portas da percepção audiotátil para o mundo não-visual das linguagens faladas, da alimentação e das artes plásticas. Como extensão e acelerador da vida sensória, todo meio afeta de um golpe o campo total dos sentidos. (McLuhan, 1964, p. 63; grifos nossos)
Retornando, então, ao tema deste item, como poderíamos pensar as tecnologias de IA, as ações que realizam e a relação dessas com as ações que realizávamos em contextos anteriores a seu aparecimento? Seriam essas formas de inteligência "extensões" daquilo que consideraríamos como "inteligência humana"?
É imperativo reconhecer a questão semântica e ponderar que o emprego da noção de "extensão", em resposta à pergunta anterior, pode ser mais adequado se o concebermos a partir de nossa segunda abordagem. Nesse sentido, a noção empregada por McLuhan exige-nos complexificar a relação entre os vários tipos de ação aos quais somos expostos a partir das tecnologias elétricas e sua ideia de extensão nos ajuda a compreender que, de algum modo, os dispositivos também agiriam sobre nós.
Se, por um lado, isso nos possibilita, então, revisar a perspectiva em que as tecnologias de IA são pensadas, ou seja, se o termo "extensão" de McLuhan nos ajuda a rediscutir o conceito de dispositivo tecnológico para além daquele de instrumento útil a certos fins, por outro lado, a fim de acomodar a própria vastidão de recursos que hoje podemos acessar, muito além daqueles da época de McLuhan, torna-se legítimo argumentar em favor de uma reproposição da própria ideia de "extensão": é o que pretendemos sugerir aqui a partir da noção de "conectividade", formulada por M. Di Felice. Com esse termo, buscamos abrir espaço a formas de inteligência que não apenas ampliem e tensionem os limites da capacidade sensória e do pensamento humanos, mas que também representem possibilidades de definir o conceito de inteligência para além de critérios, padrões e enquadramentos fundamentalmente humanos. Em outras palavras, se a segunda leitura de extensão já transformaria o próprio significado de humano, reconfigurando suas características e limites, a noção de conectividade nos possibilitaria pensar a inteligência para além da própria dimensão humana.
Parece ser fundamental que concebamos um tipo outro de vinculação entre humanos e não humanos, de relação entre as capacidades que hoje julgamos "humanas" e aquelas a que os dispositivos nos permitem acessar. Isso significaria, em última instância, ultrapassar as noções de inteligência baseadas em modelos de comparação de efeitos ou de graus de eficiência e eficácia na realização de tarefas específicas (mirando, inclusive, para além da citada premissa dos especialistas de Dartmouth). A inteligência de um ente estaria, assim, amparada em sua "conectividade", ou seja, na potência de sua aptidão em estabelecer conexões e, a partir dessa articulação conjunta, em redefinir a si mesmo e a seu próprio ecossistema. Pensando a partir dessa perspectiva, como assevera Di Felice, seríamos, então, "clima, datum, vírus, redes", passando "a adquirir nossas qualidades a partir da conexão com as redes e as tecnologias, supostamente, 'artificiais'" (Di Felice, 2023, p. 41). No limite, como nos convida a pensar, o questionamento de nossa postura eminentemente antropocêntrica permitiria mesmo redimensionar o conceito de inteligência, sugerindo a inviabilidade de uma distinção entre "natural" e "artificial": com isso, abre-se caminho para a concepção de tipos distintos de inteligência, atribuíveis a outros seres vivos e a objetos inanimados.
Uma proposta conceitual: inteligência como "conectividade"
Cumpre admitir que o próprio conceito de "artificial" pode ser problematizado se pensamos na noção de inteligência, como sugere M. Di Felice (2023), "não apenas como um produto autopoiético do indivíduo" (p. 47), exclusivo da subjetividade e da intelecção humanas, mas construído a partir da capacidade de estabelecer conexões de distintos tipos entre entes de variadas naturezas (Di Felice, 2023). Pensemos, por exemplo, nas especulações sobre a inteligência das plantas. É justamente a ausência de um aparato pretensamente autônomo de deliberação sobre o mundo — aquilo que, em geral, denominaríamos por consciência — que faria das formas de comunicação vegetais e da complexidade de suas conexões território tão interessantes ao vislumbre de possíveis formas de inteligência.
Isso é muito bem observado por E. Coccia (2018) ao se dedicar à "vida das plantas" e, notadamente em sua obra de mesmo nome, à função das raízes no reino vegetal. Comparadas à cabeça nos animais, já em reflexões como as de Platão, Aristóteles, Averróis, Bacon, Conches e, mais tarde, nas investigações de Lineu e Darwin, até os estudos atuais como os de A. Trewavas, F. Baluska e S. Mancuso, as raízes seriam uma espécie de "sistema" capaz de acessar e fazer circular boa parte das informações fundamentais aos processos responsáveis pela sobrevivência vegetal: não somente aqueles concernentes à obtenção das substâncias necessárias à realização das funções básicas, mas também os relacionados aos momentos de eventual desequilíbrio enfrentados em seu ecossistema. Essa condição renderia à reflexão de Coccia (2018) uma ousada analogia como a seguinte:
As raízes fazem do solo e do mundo subterrâneo um espaço de comunicação espiritual. A parte mais sólida da terra se transforma então, graças a elas, num imenso cérebro planetário onde circulam a matéria e as informações sobre a identidade e o estado dos organismos que povoam o meio ambiente [...] A inteligência, graças às raízes, existe sob uma forma mineral, num mundo sem sol e sem movimento. (p. 79)
Referindo-se às possibilidades de se conceber um "conceito não cerebral de inteligência", Coccia (2018), em uma de suas importantes notas, ressaltaria inclusive a recorrência com que "a ideia da Terra como cérebro" reapareceria nos trabalhos derradeiros de McLuhan (1978, p. 147), como no artigo "The brain and the media: The 'Western'Hemisphere", publicado em 1978.
A noção de "conectividade" de Di Felice tornaria também mais palatável a admissão da ideia de inteligência dentro do próprio reino animal. Pensar em uma inteligência como a capacidade de um ente de estabelecer conexões a fim de aperfeiçoar a si mesmo e ao ecossistema que integra parece ser uma das linhas das observações do engenheiro florestal P. Wohlleben (Wohlleben, 2016) sobre a inteligência de aves, abelhas, porcos e cervos e de considerações como as de D. Haraway acerca da inteligência canina (Haraway, 2005).
De fato, isso seria um traço relevante da obra teórica da professora estadunidense, que procuraria rever e apontar os reducionismos de dicotomias da modernidade, sobretudo entre humanos e não humanos, naturalidade e artificialidade. De A cyborg manifesto (Haraway, 1991 [1985]) a Staying with the trouble (Haraway, 2016), Haraway parece querer rearticular as diferenças a partir de traços de "companheirismo", de modo algum restaurando um esforço categorizante, mas, muito pelo contrário, buscando aquilo que, diante das inumeráveis diferenças que nos caracterizam como entes do mundo, seria capaz de nos abarcar sob uma mesma coletividade, em uma verdadeira relação de "parentesco": se haveria uma condição que nos caracterizaria, e sobretudo algo que nos faria, a todos, seres inteligentes e, por conta disso, mutantes, essa seria a de que nos "fazemos juntos", assim como sugere o termo definido em sua obra: "sympoiesis" (de sym = junto, ao mesmo tempo, + poiesis = criação, produção).
Simpoiese é uma palavra simples; significa "fazer-com". Nada se faz sozinho; nada é realmente autopoiético ou auto-organizado. Nas palavras do "jogo mundial" de computador Inupiat, os terráqueos nunca estão sozinhos. Essa é a implicação radical da simpoiese. Simpoiese é uma palavra própria aos sistemas históricos, complexos, dinâmicos, responsivos, situados. É uma palavra para mundo-com, em companhia. Simpoiese envolve a autopoiese e a desenvolve e estende generativamente.7 (Haraway, 2016, p. 58)
A perspectiva da inteligência como conectividade entre humanos e não humanos é também aquela a que M. Di Felice recorre ao defender a superação do termo "artificial" quando empregado com fins de caracterizar o funcionamento de certos dispositivos tecnológicos baseados, por exemplo, em algoritmos generativos e Large Language Models (LLM). Sustentando a noção de inteligência como uma "propriedade distribuída", Di Felice a posiciona como algo construído em conjunto — entre pessoas, dados, softwares, hardwares e outros entes — e, nesse sentido, nunca exclusivamente humano.
Seguindo o argumento de Di Felice, uma vez que um ente nunca autogeraria essa capacidade, seria então aceitável postularmos que, no limite, todas as inteligências seriam "artificiais", já que tratariam sempre — fazendo menção ao conceito de A. G. Tansley (1935) — de uma "habilidade ecossistêmica", "não mais 'cérebro-cêntrica', 'sujeito-cêntrica' ou 'computador-cêntrica', mas reticular e conectiva" (Di Felice, 2023, p. 47). A isso nos convidaria, a propósito, a noção recentemente apresentada por J. Lovelock (2020) e brevemente comentada por Di Felice do conceito de hiperinteligência, pelo qual o pesquisador britânico sinalizaria para o advento de uma nova era na relação entre humanos e seres das mais distintas espécies.
Diferentemente dos riscos que uma "superinteligência" poderia trazer ao planeta, ante a ameaça de um controle total do mundo exercido por tecnologias extremamente potentes — como é sugerido por nomes como N. Bostron (2014) —, Lovelock (2020), no alto de seu um século de vida, optaria pela ideia de uma complexa rede de colaboração entre humanos e tecnologias, que, juntos, dariam origem a uma "hiperinteligência" cuj os fins seriam a própria manutenção do planeta: "será Gaia a manter a paz entre nós"8 (p. 38). A conectividade entre os seres, reunindo suas diversas inteligências — para além dos modelos e critérios hoje conhecidos — operaria, assim, como elemento característico do que descreveria como um período geológico posterior ao Antropoceno. Se, nesse anterior período, fomos capazes de desenvolver tecnologias que nos permitiram "agir diretamente nos processos e na estrutura de todo o planeta"9 (Lovelock, 2020, p. 38), no "Novaceno", nome atribuído pelo pesquisador a essa época que estamos a adentrar, estaríamos diante de um novo estágio de desenvolvimento da própria noção biológica de vida.
Para Lovelock (2020), do mesmo modo que somos o resultado das primeiras formas de inteligência surgidas há cerca de 4 bilhões de anos, também daremos origem a novos tipos de inteligência — com a importante diferença de que estes últimos seriam, no entanto, decorrentes de um tipo de vida não exclusivamente biológica. É o que, pois, faria Lovelock (2020) a proclamar em seu último livro: "Os ciborgues conceberão ciborgues. Em vez de continuarem a existir como formas de vida inferiores apenas porque isso nos convém, eles evoluirão e poderão se tornar produtos evolutivos avançados de uma nova e poderosa espécie"10 (p. 113). Promovendo a colaboração entre distintos tipos de vida, o Novaceno seria, como o próprio título da obra anuncia, a era par excellence da "hiperinteligência".
A inteligência do ChatGPT como conectividade
O argumento da inteligência como conectividade parece ainda mais convincente quando nos detemos, por exemplo, ao funcionamento de arquiteturas estocásticas como as do ChatGPT, do Bing, do Bard ou de outros LLMs. O que significa, de fato, nesse caso, "aprendizado"? Um sistema "aprende" mais quando processa mais dados: quanto mais seus algoritmos "testam" os conjuntos de dados aos quais são submetidos — oferecendo resultados a partir dessas operações —, mais "inteligente" se torna. Essa é, pois, uma definição que se aproxima, por exemplo, daquela oferecida por A. Géron (2019), em sua obra teórica e aplicada sobre o tema: "Aprendizado de Máquina é a ciência (e a arte) da programação de computadores para que eles possam aprender com os dados" (p. 4). Uma das principais técnicas utilizadas para isso baseia-se no modelo de redes neurais artificiais (ANN, de Artificial Neural Network [Graupe, 2007]), que se inspira no funcionamento dos neurônios humanos e é capaz de realizar uma infinidade de operações de cálculo e de identificar nessas novos padrões, os quais podem ou não — a depender dos próprios algoritmos — ser incorporados ao sistema, condição que torna o modelo algo aberto, em um movimento de constantes rearranjos (Cormen et al., 2009; Alsamhi et al., 2019).
A rigor, não se pode, portanto, compreender aqui "aprendizado" como algo que é "agregado" ao sistema. A inteligência não é uma capacidade cumulativa como talvez se poderia pressupor, mas seu aprimoramento significa uma modificação de toda a ecologia de operações do dispositivo tecnológico, de seus efeitos e do contexto ambiental em que tudo isso ocorre. Em outras palavras, o estabelecimento de novas conexões não significa somente uma alteração quantitativa da potência de operação da arquitetura informativa (um "aumento" ou um "prolongamento" de seus efeitos, tal como subentendido pela primeira leitura do conceito de "extensão" que discutimos), mas, principalmente, uma alteração qualitativa do próprio ecossistema do qual essa arquitetura faz parte (o que remete à segunda acepção de "extensão").
Assim, uma nova conexão — seja essa resultante de um ente humano ou não humano — significa, por assim dizer, um rearranjo de toda a rede anteriormente existente. Concebida em uma perspectiva mais ampla, a incorporação de um novo parâmetro não significa a sua simples soma ao repertório de parâmetros anteriormente existente, mas torna a própria rede — ou seja, o conjunto, o coletivo — mais inteligente. Torna-se evidente, com isso, o aspecto da conectividade, e, observado seu caráter par excellence ecossistêmico, a inviabilidade de categorias como "natural" e "artificial", tributárias de uma pretensa origem imutável capaz de outorgar aos entes o título de "produzidos" ou "não produzidos" pela natureza. Nessa dinâmica das conexões, aquilo que principia não permanece para contar sua história, mas torna-se outro.
Por essa trilha, talvez possamos compreender melhor como se dá o "aprendizado de máquina" (machine learning) de modelos como o Chat-GPT. De fato, a cada nova entrada de dados (por exemplo, quando lhe fazemos alguma pergunta), poderíamos admitir uma nova rede de parâmetros que se rearticula de modo "mais inteligente" em relação à primeira vez em que interagimos com sua arquitetura informativa. Por isso, é imperioso que concebamos esses recursos para além de simples fornecedores de soluções a problemas de natureza ordinária.
O que chamamos, nesse sentido, de "aprendizado" ou de "inteligência" (como a capacidade de aprender) pode ser descrito não somente a partir da reacomodação interna decorrente da incorporação dos novos parâmetros, mas também daquilo que, em um nível mais amplo e radical (naquele do ecossistema), significará outro grande rearranjo. Assim, LLMs como o ChatGPT não representariam hoje apenas novos atores a integrarem a produção verbo-visual nas redes digitais, mas também elementos capazes de precipitar alterações — remetendo à reflexão de McLuhan (1972, p. 54) — na própria "ecologia cultural" das formas contemporâneas de escrita e de leitura.
Em alguma medida, é como se a linguagem verbal se transformasse a partir do advento do software, já que os indivíduos que a farão sobreviver já não seriam mais os mesmos quando comparados àqueles anteriores a tal surgimento. O aparecimento de novas tecnologias de comunicação, como genialmente observa W. Benjamin já no contexto da eletricidade e dos mass media, não somente implicaria diferentes produtos ou efeitos comunicativos, mas, notavelmente, significaria uma transformação da própria natureza em que se dão esses processos. Seria justamente uma ideia como essa que levaria o filósofo alemão a postular que "a natureza que fala ao aparelho fotográfico é outra em relação àquela que fala ao olho"11 (Benjamin, 2000 [1935], p. 102). Ora, pensamento similar parece vir à tona quando G. Kasparov comenta sobre como suas disputas de xadrez com computadores, desde aquelas com o Deep Blue, da IBM, em 1996 e 1997, alterariam o próprio modo de pensar e de conduzir o jogo (Accoto, 2017, p. 89; Kasparov, 2017).
A conectividade entre humanos e não humanos: horizontes para a media ecology
Diante do exposto, cumpre assinalar que este texto representa um primeiro esforço em propor uma crítica do conceito de "inteligência". Propondo-a aqui a partir da noção de conectividade de Di Felice, buscando também salientar sua plausibilidade em cotejo à ideia de "extensão" de McLuhan, sugerimos pensá-la como uma operação ecossistêmica, a qual não só apreenderia as transformações a que é submetida, como também teria nessas o âmago de seu próprio aperfeiçoamento. A noção de conectividade formulada por Di Felice é aqui descrita como a capacidade de um ente — e, ao mesmo tempo, do ecossistema a que pertence — de estabelecer conexões e, a partir delas, reconfigurar as propriedades do todo. A cada nova conexão, um novo conjunto de dinâmicas se descortina, de modo que o sistema das conexões futuras já não será mais aquele das conexões do princípio.
Isso implica diretamente duas considerações. A primeira delas ressalta uma ideia de aprendizado que procura se libertar da herança mecanicista e linear à qual, de algum modo, seria filiado o conceito ocidental e europeu de inteligência, permitindo-nos perceber como a noção de "consciência autônoma", teorizada sobretudo pelo racionalismo de Descartes, sobreviveria, ainda que transmutada, na definição mater de IA, formulada por seus pioneiros C. Shannon, M. Minsky, J. McCarthy e H. Simon.
O segundo aspecto, por sua vez, ao conceber a conectividade como capacidade geral de estabelecer conexões sem se ater a filiações ontológicas (Di Felice, 2023), possibilita-nos trazer para a esfera do "inteligente" tanto seres humanos como entes não humanos. Isso nos abre a um exercício, árduo mas fundamental, de pensar a técnica para além de uma visão eminentemente antropocêntrica, concebendo-a como uma verdadeira complexidade no sentido mesmo atribuído por E. Morin (2005): aquele de complexus, do que "é tecido junto". Aparecem aí, como novos "actantes" — empregando o termo de A. Greimas, retomado por B. Latour (2005) —, os próprios dados, os algoritmos, os dispositivos tecnológicos, mas também os animais, as plantas, os fungos, os fenômenos naturais. Esse horizonte convida-nos ironicamente a um sedutor flerte com uma proposição de "intelecto" muito mais criativa e frutífera, próximo àquela do termo grego do qual descenderia "intellectus": "voúç" (nous), cuja formulação a partir de Anaxágoras pressuporia uma noção de inteligência não propriamente humana, mas vinculada à totalidade do cosmos, como uma espécie de mente universal (Bailly, 1935, pp. 1332-1333).
Solo potente à fertilidade dessas duas considerações talvez seja aquele dos estudos de media ecology, os quais, buscando ir além dos expedientes próprios das reflexões de McLuhan ou N. Postman — seu outro precursor —, sugerem um campo aberto às próprias inovações impulsionadas pelas tecnologias, entre outros flancos importantes. Solo fértil por conta de seu "caráter metadisciplinar", expressão oportunamente empregada por O. Islas (2015) a fim de sugerir-lhe uma "abordagem complexa, simultaneamente semântica, ecológica e histórica" (p. 1075).
A vocação inovadora dessa "metadisciplina" e seu caráter de abertura somam-se, pois, àquela da própria noção de conectividade de Di Felice. Firma-se, com isso, a possibilidade de instauração, e de institucionalização, de uma fronteira de estudos capaz de entrecruzar distintos campos do saber e de oferecer, além de um novo léxico, chaves epistêmicas alternativas. Por meio delas, talvez seja possível, assim como nos projetos — cada um à sua maneira — de M. Heidegger (1963[1953]), G. Simondon (1989 [1958]) ou mesmo de Y. Hui (2016), admitir modos diversos de inteligibilidade da técnica na tentativa, sempre legítima e necessária, de diagnosticar e compreender os fenômenos próprios a uma época.
Notas
1 Em complementação ao estudo da noção de conectividade em Di Felice, recomendamos também: Di Felice (2017; 2022).
2 Tradução nossa. No original: "The study is to proceed on the basis of the conjecture that every aspect of learning or any other feature of intelligence can in principle be so precisely described that a machine can be made to simulate it".
3 Tradução nossa. No original: "Artificial intelligence is that activity devoted to making machines intelligent, and intelligence is that quality that enables an entity to function appropriately and with foresight in its environment. According to that definition, lots of things — humans, animals, and some machines — are intelligent. Machines, such as 'smart cameras', and many animals are at the primitive end of the extended continuum along which entities with various degrees of intelligence are arrayed".
4 Nesse sentido, seria conveniente — ainda que, na ocasião deste artigo, não nos caberia realizá-la — uma análise acerca da chave de leitura em que o conceito de IA tem aparecido nas discussões encabeçadas por grandes organismos supranacionais como a Organização das Nações Unidas e a United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco; ver, por exemplo: Jaakkola, 2023; Unesco, 2022; Unesco, 2023a; Unesco, 2023b; Unesco, 2023c).
5 Tradução nossa. No original: "Action d'étendre, de s'étendre; résultat de cette action. [...] Action d'accroître, de s'accroître; de prendre plus d'importance, de s'agrandir. [...] Action de donner à quelque chose plus d'ampleur, d'englober un plus grand nombre d'éléments. [...] Prolongement; action de prolonger dans le sens de la longueur; ce par quoi se prolonge une chose; cequi prolonge la partie principale d'un corps".
6 Tradução nossa. No original: "Action de tendre, extension; action de répandre, diffusion; déchaînement".
7 Tradução nossa. No original: "Sympoiesis is a simple word; it means making-with' Nothing makes itself; nothing is really autopoietic or self-organizing. In the words of the Inupiat computer 'world game' earthings are never alone. That is the radical implication of sympoiesis. Sympoiesis is a word proper to complex, dynamic, responsive, situated, historical systems. It is a word for worlding-with, in company. Sympoiesis enfolds autopoiesis andgeneratively unfurls and extends it".
8 Tradução nossa. No original: "Sarà Gaia a mantenere la pace tra noi".
9 Tradução nossa. No original: "Agire direitamente sui processi e sulla struttura deWintero pianeta".
10 Tradução nossa. No original: "I cyborgconcepiranno cyborg. Invece di continuare a esistere come forme di vita inferiori soltanto perché ci fanno comodo, evolveranno e potranno diventare prodotti evolutivi avanzati di una nuova e potente specie".
11 Tradução nossa. No original: “La nature qui parle à l’appareil photographique est autre que celle qui parle à l’œil”.
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