Verdades e produção de subjetividades: um estudo sobre mulheres bíblicas no discurso publicitário
Verdades y la producción de subjetividades: un estudio sobre mujeres bíblicas en el discurso publicitario
Truths and Production of Subjectivities: A Study of Biblical Womens in Advertising Discourse

 


Recibido: 2012-02-20
Aceptado:
2012-05-10

 

Denise Gabriel Witzel
Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Guarapuava-PR-Brasil.
denisewitzel@uol.com.br

Resumo

A partir do conceito de verdade, tal como ele é formulado na obra de Michel Foucault, mais precisamente apartir da diferença que o filósofo propõe na sua genealogia entre verdade-demonstração, valorizada pela tradicional perspectiva filosófico-científica, e verdade-acontecimento, este estudo propõe dar visibilidade à atualização de enunciados que, no discurso publicitário, ao serem repetidos, legitimam saberes sobre o ser mulher. O material de análise é composto por dez peças publicitárias que, em sua rede enunciativa, concedem relevo a dois famosos modelos de mulheres bíblicas, exaltados há séculos por toda uma tradição cristã: Eva (emblema do pecado e da perdição) e a Virgem Maria (emblema da virtude e da salvação). Focalizando a reconstrução dos jogos de verdade instaurados desde tempos quase imemoriais, com relação ao ser mulher, as análises dão visibilidade às condições históricas de emergência das imagens daquelas mulheres, à lei de coexistência desses enunciados com outros e aos princípios segundo os quais subsistem, ainda que reinventados, até os dias de hoje.

Palavras-chave

Jogos de verdade, discurso publicitário, identidade do feminino

Resumen

A partir del concepto de verdad, tal como es formulado en la obra de Michel Foucault, más precisamente a partir de la diferencia que el filósofo propone en su genealogía entre verdad/demostranción, valorada por la tradicional perspectiva filosófico-científica, y verdad/ acontecimiento, este estudio propone dar visibilidad ala actualización de enunciados que, en el universo publicitario, legitiman saberes sobre el ser mujer. Son enunciados que dan destaque a dos famosos modelos de mujeres bíblicas, exaltados hace siglos por toda una tradición cristiana: Eva (emblema del pecado y de la perdición) y la Virgen María (símbolo de la virtud y salvación). Al focalizar la reconstrucción de los juegos de verdad forjados en la noche de los tiempos, con relación al ser mujer, los análisis dan visibilidad a las condiciones históricas de emergencia de las imágenes de aquellas mujeres, a la ley de coexistencia de esos enunciados con otros y a los principios segundo los cuales subsisten, aunque reinventados, hasta los días de hoy.

Palabras clave

Juegos de verdad, discurso publicitario, identidad del femenino.

Abstract

Based on the concept of truth as formulated in the work of Michel Foucault, specifically the difference the philosopher proposes in his genealogy between truth/demonstration, assessed from the traditional philosophical-scientific perspective, and truth/event, this study is intended to shed light on the updating of assertions in the advertising world that give credence to knowledge about being a woman. These assertions emphasize two famous Biblical female models exalted for centuries in Christian tradition: Eve (the symbol of sin and destruction) and the Virgin Mary (the symbol of virtue and salvation). By focusing the reconstruction of truth games forged over time in relation to being a woman, the study looks at the historical conditions surrounding the emergence of the images of these two women, the coexistence of these assertions with others, and the principles whereby they subsist to this day, despite having been reinvented.

Keywords

Truth games, advertising discourse, feminine identity.

 

Para citar este artículo / To reference this article / Para citar este artigo
Witzel, D. G. Agosto de 2012. Verdades e produção de subjetividades: um estudo sobre mulheres bíblicas no discurso publicitário. Palabra Clave 15 (2), 204-223.


Introdução

Para Foucault, somos, inevitavelmente, submetidos, pelo poder, à produção da verdade e somente podemos exercer algum poder mediante a produção da própria verdade. Além disso, "em todos os momentos e em todos os lugares do mundo, e a propósito de toda coisa, pode-se e deve-se colocar a questão da verdade [pois] há verdade em toda parte e a verdade nos aguarda em toda parte, em todos os lugares e em todos os tempos" (Foucault, 2006, p. 316). Diante de tais afirmações, convém, de início, interrogar: de que verdade precisamente se fala e da verdade de quê?

O filósofo fala de verdade, jogos de verdade, vontade de verdade, política da verdade e da coragem de verdade. Sem a pretensão de retraçar os elementos que essas múltiplas expressões englobam, limitar-nos-emos, neste trabalho, a recuperar algumas reflexões e definições que permitirão entender o discurso publicitário como aquele que atualiza e faz circular saberes históricos tomados em certo momento e em certo lugar como saberes verdadeiros sobre o que é ser mulher em múltiplas temporalidades e em diversos espaços. Mais precisamente, pretendemos aclarar certos entrecruzamentos de discursos e os efeitos de sentido daí decorrentes que legitimam saberes, instituem poderes normatizadores, constroem simulacros e paradigmas, circunscrevendo dois movimentos identitários da mulher na publicidade: mulher Eva e mulher Virgem Maria.

Para a realização dessa tarefa, elegemos, como objeto de análise, dez peças publicitárias veiculadas recentemente (entre os anos de 2008 e 2011) na grande mídia, procurando descrever regularidades em séries parafrásticas, notadamente a repetição e a sedimentação de sentidos velhos, renovados na atualidade dos jogos discursivos empreendidos pela publicidade. Nas ressonâncias e nas reverberações, colocarei em foco: a) rastros que a história inscreve nos textos selecionados; b) enunciados repetidos e acomodados na memória discursiva como verdades; c) procedimentos interdiscursivos de montagem dos discursos. Olharemos, portanto, não para o nível da proposição, da representação ou do mundo real, mas para os enlaces entre história, sujeito e sentido, entendendo ser possível depreender certos lugares do sujeito-mulher inscritos e valorizados no discurso publicitário. Lugares definidos nas relações de poder-saber-verdade que, como se verá, presidiram os processos de subjetivação do feminino desde os primordios da história das mulheres, à luz de preceitos religiosos.


Sobre o conceito de verdade

O ponto basilar sobre o conceito de verdade formulado, por Michel Foucault, centra-se numa verdade historicamente construída que muito se distancia da concepção de verdade metafísica e transcendente, já que "a verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos reguladores de poder" (Foucault, 1979, p. 12). Tratase, igualmente, da verdade que implica a constituição/fabricação do sujeito, que delineia identidades e insere o indivíduo em práticas, inventando os seus "eus".

Aproximar-se, ou mesmo desvelar um conhecimento verdadeiro, sempre foi uma meta para os filósofos e, de modo mais intenso, a partir de Descartes. Foucault (1979, p. 156), na esteira de Nietzsche e em face da tradicional questão filosófica "qual o caminho mais seguro para a verdade?" propõe: "qual foi o caminho aleatório da verdade? "Assim, se antes se questionava a relação entre o sujeito e a verdade a partir de uma ideia de essência interior, tentando entender quais seriam os fundamentos necessários para que se pudessem desvendar as verdades sobre o mundo, com Nietzsche e, depois, com Foucault, passa-se a questionar quais seriam os processos históricos implicados na fabricação de discursos de verdade. O problema não seria mais pensar a subjetividade cartesiana, a do "penso, logo existo", segundo a qual, o sujeito seria originário, transparente a si mesmo, autônomo, instância fundamental e apto a construir um conhecimento verdadeiro ou a construir um domínio de verdades inquestionáveis e inquebrantáveis, mas o de descrever historicamente os procedimentos pelos quais discursos verdadeiros alienam, seduzem, divertem, condenam, informam e, principalmente, transformam todos nós e cada um de nós em sujeitos. Em outros termos, na perspectiva foucaultiana, são as produções históricas de discursos que constroem subjetividades e fixam a(s) verdade(s) do/sobre o sujeito, constituindo-o.

Articulando a verdade ao acontecimento, quando se propõe fazer uma "pequena história da verdade em geral", em seu curso sobre O poder psiquiátrico (2006), Foucault aponta a diferença entre uma verdade-demonstração, valorizada pela tradicional perspectiva filosófico-científica, e uma verdade-acontecimento.

Com relação à verdade-demonstração, ele assevera que ela corresponde a um saber que pressupõe a existência da verdade em todaparte, em todo lugar e em todo tempo, inalterável sob quaisquer contingências. Alcançála ou mesmo situá-la depende dos conhecimentos do sujeito diante de tal verdade que está sempre lá, pronta para ser mostrada, pois "não há buraco negro na verdade", o que significa que "nunca há nada que seja suficientemente tênue, fútil, passageiro ou ocasional para não concernir à questão da verdade, nada suficientemente distante, mas nada tampouco suficientemente próximo para que não se possa lhe fazer a pergunta: o que é você em verdade?" (Foucault, 2006, p. 302).

A verdade que justamente não está em toda parte e em todo tempo aguardando a iniciativa de um sujeito apto a espreitá-la, seria a verdade vista como irrupção de uma singularidade histórica:

[...] seria o posicionamento de uma verdade dispersa, descontínua, interrompida, que só falaria ou que só se produziria de tempo em tempo, onde bem entender, em certos lugares [...] uma verdade que não nos espera, porque é uma verdade que tem seus instantes favoráveis, seus lugares propícios, seus agentes e seus portadores. É uma verdade que tem sua geografia [...] verdade que também tem seu calendário ou, pelo menos, sua cronologia própria (Foucault, 2006, p. 303).

Geografia e calendário, na medida em que a verdade-acontecimento é enunciada em espaço e tempo específicos, pois aquilo que é tomado como verdadeiro não é válido em qualquer lugar ou em qualquer momento. Emerge em certo contexto sócio-histórico, em um momento propício, um kairós, ou seja, na ocasião, oportunidade e tempo que possibilitam sua aparição. Essa verdade possui seus mensageiros privilegiados e seus opostos: aqueles possuem os segredos dos lugares e dos tempos e, porque foram submetidos às provas de qualificação, estão autorizados a "pronunciarem as palavras requeridas ou consumarem os gestos rituais"; estes são os sujeitos sobre os quais a verdade pode se abater: "os profetas, os adivinhos, os inocentes, os cegos, os loucos, os sábios etc." (Foucault, 2006, p. 303). Trata-se da verdade que não é universal, o que não quer dizer que seja rara. E a verdade dispersa, produzida, vale repetir, como acontecimento.

As duas séries na história da verdade implicam uma da ordem do que é e outra da ordem do que acontece. Esta última é perseguida, mais produção do que apofântica, provocada por rituais, captada por artimanhas, apreendida conforme as ocasiões; a primeira é descoberta, constante e constituída. Questões do método são as preocupações da verdade-descoberta e questões relativas ao poder e às estratégias são as da verdade-acontecimento. Isso porque:

[...] entre essa verdade-acontecimento e o que dela é apreendido, que a apreende ou que é atingido por ela, a relação não é da ordem do objeto ao sujeito. Não é, por conseguinte, uma relação de conhecimento; é antes uma relação de choque; é também [...] uma relação arriscada, reversível, belicosa; é uma relação de dominação e de vitória, não, portanto, de conhecimento, mas de poder (Foucault, 2006, p. 304).

As verdades, quer como demonstração quer como acontecimento, estão espraiadas em toda e qualquer sociedade. Mas elas não são unívocas, uma vez que cada sociedade possui, subjacente às suas práticas, um "regime de verdade", uma "política geral de verdade", o que significa que há

[...] tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 1979, p. 12).

É nessa direção que, em A ordem do discurso (Foucault, 2001 ), ao desenvolver a ideia de que "nossa civilização, apesar de venerar o discurso, tem por ele uma espécie de temor" e de que a consequência disso é a produção "de sistemas de controle instituídos de forma a dominar a proliferação dos discursos e a apagar as marcas de sua irrupção nos jogos do pensamento e da língua" (Gregolin, 2004, p. 97), Foucault coloca a vontade de verdade, juntamente com a segregação e a interdição, como forma de exclusão discursiva, isto é, como um dos procedimentos externos que têm por função conjurar os poderes e os perigos do discurso.

Todas as formulações em torno da verdade, apresentadas ainda que sumariamente aqui, levam irremediavelmente à análise do discurso, ao acontecimento discursivo, à necessidade de se considerar a existência histórica e material dos discursos em sua heterogeneidade, para que os efeitos da verdade possam ser apreendidos em sua dispersão, ou melhor, para que seja possível: a) desestabilizar lugares de verdade e as redes de poder ali tramadas; b) dar visibilidade aos jogos das diferenças, às relações e aos desdobramentos das batalhas sociais em busca das verdades que contribuem, dentre outras questões, para o desenho dos contornos identitários dos sujeitos.

É no bojo dessa complexidade que situarei o discurso publicitário como algo que irrompe na contemporaneidade, para apreendê-lo como acontecimento, no interior da formação discursiva, com vistas a descrever a condição de existência de certos enunciados e seu sistema de dispersão.


Sobre discurso publicitário e (re)produção de sentidos

Em função de nossa filiação teórica, análise do discurso de base foucaultiana, não serão consideradas, neste estudo, as hipóteses comunicativas segundo as quais o texto publicitário seria algo meramente "comercial", ou seja, uma propaganda de produtos, pressupondo, de um lado, um emissor de mensagens e, de outro, um leitor/ouvinte receptivo. Sob a ótica arqueológica de Foucault, o texto publicitário, como quaisquer outros, é um acontecimento discursivo que se dá a 1er e, enquanto tal, seus efeitos de sentido, embora visem primeiramente à efetivação da dicotomia compra-venda, ligam-se fortemente a um aparato de criação de símbolos que vão ao encontro dos desejos da sociedade de consumo.

Consequentemente, esses efeitos desempenham um papel importante tanto nos comportamentos sociais quanto nas atividades e processos culturais, na medida em que a publicidade, sem dúvidas, constitui-se em uma das vozes mais ativas na ocupação dos espaços públicos, enunciando cotidianamente certas verdades sobre quem somos ou quem deveríamos ser. Por isso, na esteira de Gregolin (2008, p. 95), o discurso publicitário pode ser considerado uma "fonte poderosa e inesgotável de produção e reprodução de subjetividades, evidenciando sua sofisticada inserção na rede de poderes que criam as sujeições do presente".

Com o intuito de voltarmo-nos analiticamente para esse tipo de discurso, partiremos do princípio de que os processos de apreensão e de produção dos sentidos (constituidores de jogos de verdade) somente podem ser analisados se for considerado o fato de que o enunciado (verbal, visual ou verbo-visual) "[...] abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória; é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação" (Foucault, 2007, p. 32). Em outros termos, "um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados" (p. 110) e sua existência não se dá de forma livre, neutra e independente, pois desde sua raiz ele se relaciona com a memória e reatualiza outros enunciados formando um campo associado, um domínio de coexistência.

Interpretar os enunciados estrategicamente mobilizados pelas peças publicitárias escolhidas para este trabalho implica dar visibilidade às relações possíveis com o passado, descrevendo o campo e o domínio onde se alojam outros enunciados, ora evocados ora silenciados. Na complexidade dessas relações, sobressaem-se os discursos inscritos em duas séries enunciativas que não falam somente de produtos, marcas ou ideias, mas também de saberes verdadeiros sobre o sujeito mulher. Ao considerar essas séries, interessamo-nos prioritariamente pelas retomadas numa nova materialidade e num novo tempo/espaço dos discursos que se consolidaram nos jogos de verdade, antes, liderado pelo discurso religioso, e hoje, valorizado também pelo discurso publicitário. Como se verá, são discursos que aju dam, há séculos, a disseminar e a manter certos valores e identidades do feminino, e, ao serem insistentemente repetidos na publicidade, parecem impor certa homogeneidade nos modos de a mulher ser e estar no mundo.


Mulheres bíblicas discursivizadas na publicidade

Partimos do princípio de que os "eus" da nossa sociedade são incontornavelmente produzidos pelas e nas práticas discursivas e de que a publicidade, ela mesma uma dessas práticas, é um importante suporte institucional legitimado para poder dizer aquilo que funciona como verdadeiro. O que ela diz exerce, sobre outros discursos, uma forma de pressão, uma coerção, silenciando alguns dizeres e reverberando outros tomados como verdadeiros. Diante disso, chamamos a atenção, inicialmente, para as duas posições de sujeito mulher em destaque nas seguintes peças publicitárias.

Por que esses e não outros enunciados? - perguntaria Foucault (2007). E preciso considerar que todo acontecimento discursivo é uma irrupção de uma singularidade, configurando-se como "nó de uma rede" (p. 26), ligado a outros acontecimentos emaranhados numa dispersão temporal e apreendidos numa pontualidade. O que "efetivamente" é dito/visto nessas duas peças publicitárias (PP) nos conduz a pensar nas condições históricas de possibilidades daqueles enunciados (verbais e visuais), no fato de o discurso (re) estabelecer enunciados ligados "não apenas a situações que o provocam, e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem' ' (Foucault, 2007, p. 32).

Tomemos, para fins de análise, alguns detalhes colocados em relevo naquelas peças. Na primeira (PPl), salta aos olhos a imagem de uma conhecida modelo brasileira, Ana Hickmann, exibindo a parte de cima de seu corpo. Ela olha para um possível coadjuvante, fora do nosso plano de visão, fazendo funcionar claramente um jogo de sedução reforçado pela atitude de provar (oferecer?) uma maçã. Já na segunda (PP2), vemos a imagem de uma mulher igualmente exibindo a parte de cima de seu corpo. Nesta, no entanto, a sensualidade cede lugar para um ato sublime, evidenciado na prática de amamentar um bebê e no texto verbal "o melhor lugar para o seu bebê, ontem hoje e sempre". Diante dessas duas imagens de feminino, queremos pensar nos efeitos de verdade (re)estabelecidos prioritariamente pela colocação em discurso da mulher comendo/oferecendo uma maçã e da mulher com um bebê/filho no colo.

A publicidade parte do princípio de que o público-alvo reconhece como verdade o fato de que a maçã é o fruto proibido, na medida em que, no drama relatado no Velho Testamento, esse seria o fruto da árvore da ciência do bem e do mal. Com efeito, o enunciado "maçã", convocado na materialidade da PPl, remete ao exterior e ao anterior de sua existência, isto é, remete primordialmente ao mito referente à esposa apresentada na história de Adão e Eva, o casal designado, primeiro pelos hebreus e depois pelos cristãos e mulçumanos, a ser progenitor da raça humana.

No resgate da memória, sabemos que Eva, para muitos a mãe ancestral da humanidade, foi rapidamente insultada por ser a primeira mulher-esposa-mãe desobediente; foi castigada e, no decurso da história, estereotipada no imaginário social como o símbolo da tentação, por ter seduzido Adão e o arrastado ao pecado mortal. Por sua culpa, ambos foram expulsos do jardim do Eden e toda a humanidade foi castigada.

Em meio à "sentença de morte" determinada pelo Criador, que visava fundamentalmente ensinar que as desventuras dos seres humanos na terra provinham da desobediência do primeiro casal à ordem divina, não há, no Velho Testamento, qualquer menção sobre qual seria, de fato, o fruto desencadeador de toda a maldição da humanidade, destinada a viver com o fardo do trabalho, do sofrimento, das dores no parto e da morte. Foi somente por volta do século XIII, da era cristã, que a verdade-acontecimento sobre tal fruto irrompe. A maçã foi eleita para representar o pecado original e, atravessando as diferentes épocas, ela se sedimentou como verdade-demonstração, indissociável do mito da origem da criação. Mas por que maçã?

Segundo Flahaut (2007), em latim malum (a "maçã") e malum (o "mal") diferenciam-se unicamente pela pronúncia da vogal a, breve naquela e longa nesta. Na expectativa de transformar o drama em questão em algo mais claro e mais concreto para os fiéis, "os mensageiros privilegiados" (Foucault, 2006), ou seja, autoridades religiosas da Idade Média, optaram pela tradução de malum-maçã para identificar o "fruto da árvore da ciência do bem e do mal", atribuindo uma versão mais simplificada da transgressão. Estava, assim, criada e legitimada a verdade sobre o fruto proibido tão largamente explorado em anúncios publicitários, a exemplo da PP1 e destas outras.

No espaço discursivo da publicidade, em sua heterogeneidade, insistentemente vem à tona lindas mulheres em atitude de oferecer ou comer o fruto proibido. Visando à venda de quaisquer produtos - bolsas (PP3), tintura para cabelo (PP4), lingerie (PP5), programa de TV (PP6)-historiei zam-se na materialidade discursiva os jogos de verdade que teceram as tramas narrativas cristalizadas no imaginário que definiram o lugar atribuído à primeira mulher. Isso quer dizer que o enunciado "maçã", ao irromper na complexidade de todas essas peças, atualiza outros enunciados inscritos na memória coletiva que falam de desejo e de tentação, já que investido de sentidos implícitos associados incontornavelmente ao caráter pecaminoso do feitiço relatado no Gênesis.

Pelo reencontro dessa memória (Pêcheux, 2007), tem-se a recorrência e a repetição revitalizadas; há a reconstrução do passado compartilhado e o reconhecimento por parte do leitor-consumidor da estabilização dos sentidos do enunciado/imagem "maçã" que permite percorrer os percursos escritos na narrativa do Velho Testamento e de outras tantas que contribuíram para reafirmar, na atualidade, as mesmas verdades que há muito forjam a identidade da mulher-Eva.

Em outros termos, a partir da tematização da maçã na estruturação das materialidades, constitui-se um movimento discursivo que situa as formulações novas, atuais perante uma anterioridade facilmente restabelecida. Repetem-se, num novo texto, discursos verdadeiros que apontam para uma posição sujeito na qual a mulher é identificada, como já havia assinalado Foucault (1979), com o seu sexo, esse que é tentador e perigoso, força do mal (Perrot, 2007), desde o início dos tempos.

Os enunciados verbais, quando ocorrem, vão ao encontro dessa configuração identitária. Temptation (PP3), [...] É tentação certa (PP5), [...] está em jogo o destino da humanidade (PP6) [...] surgem em sua materialidade integrando a rede de formulações das verdades que subjetivaram a amante tentadora e pecadora.

Contudo, os sentidos em torno do prazer e da sedução tão largamente exaltados nessas peças, cedem lugar, na PP2, para outros sentidos que apontam as verdades identificadoras da mãe casta e piedosa, espelhada na imagem ícone da Pietà2, aquela imortalizada na clássica escultura de Michelangelo e sedimentada no imaginário como emblema do amor materno. A Virgem e Santa Maria, segundo a tradição religiosa, sobretudo a católica, foi a mulher que redimiu a humanidade dos pecados de Eva. Esse deslocamento coloca luz em trajetos de sentidos igualmente atravessados por verdades produtoras de saberes por meio dos quais o estatuto de ser mulher, agora, implica "essencial e naturalmente" ser mãe.

A publicidade, ao invocar a memória da santa, particularmente a partir do ato materno de acolher o filho no colo, possibilita-nos acionar as relações e sucessões de discursos antecedentes que fizeram da maternidade o "grande caso das mulheres", como explica Perrot (2007, p. 68). Mais do que isso, a maternidade foi transformada em uma função aureolada de amor, "o amor a mais", o amor dado a conhecer pela devoção e total abnegação da redentora. Amor, portanto, impregnado do sagrado e do divino, que aponta para um corpo dessexualizado, já que no efeito de memória identifica-se aquela que concebeu excluindo o sexo. Aponta, igualmente, para um corpo naturalmente constituído para gerar filhos. Vista desse modo, ou seja, como algo saturado de pureza e intrínseco à essência feminina, a maternidade se inscreve na história da mulher como um dispositivo identitário não questionável, quando, a rigor, ela é uma construção histórica. Para dar conta dos efeitos de sentido e de sujeito produzidos na PP2, vale voltarmos no tempo, para recuperar pelo menos duas práticas comuns entre os séculos XVI e XIX que desnudam a verdade sobre o amor maternal abnegado e natural.

A primeira diz respeito à prática de entregar um recém-nascido à Roda dos Expostos, uma espécie de caixa giratória, instalada em asilos ou hospitais, cuja estrutura permitia que aquele que abandonava a criança não fosse visto por aquele que iria socorrê-la. As crianças ali "depositadas" não possuíam qualquer referência e ficavam aos cuidados, nem sempre atentos, de enfermeiras ou religiosas. Com relação à segunda prática, também se costumava encaminhar o recém-nascido a uma ama de leite que ficava com a criança até a idade de seis anos. Dentre as razões que levavam as mulheres-mães a se desvencilharem dos bebês e recorrerem às amas de leite, segundo Foucault (1979) e Perrot (2007), destaca-se o fato de que muitos homens achavam excessivo o tempo dedicado ao bebê, somado à crença de que, durante a amamentação, o sexo era interditado. As famílias ricas, então, selecionavam as amas que atendiam em domicílio. Mas milhares de crianças foram enviadas ao campo, às casas das amas.

Tanto o abandono na Roda quanto o envio às amas provocavam grande índice de mortalidade infantil, pois os hospitais e asilos ressentiamse de higiene e de recursos para cuidar dos bebês que chegavam ininterruptamente; muitas vezes, chegavam doentes, desnutridos ou já quase mortos. As amas de leite, por sua vez, viviam em estado de muita pobreza e aceitavam grande quantidade de recém-nascidos unicamente porque careciam de dinheiro. Em meio à precariedade e à miséria de diversas ordens, o número de mortos nessa indústria do aleitamento impressiona: "algumas amas tinham um índice de dezenove crianças mortas em vinte que lhe haviam sido confiadas" (Foucault, 1979, p. 276). Somem-se a isso tudo os "infanticídios e os abortos que eram muito praticados a ponto de constituírem métodos de regulação da natalidade" (Perrot, 2007, p. 70).

Foi diante desse quadro, em que muitas outras variáveis poderiam ser acrescentadas (as epidemias e a fome, por exemplo), mais particularmente diante de certo desprezo com relação à criança e de certa familiarização com a morte (Foucault, 2005), que se tornou urgente a instauração, no sé culo XVIII, de um regime de governo voltado para uma política capaz de gerir e controlar a vida da população. Foi necessário, em decorrência, fazer funcionar o biopoder de que fala Foucault (1988), cujos efeitos, dentre muitos outros, propiciaram a valorização e o controle da vida. A noção de maternidade ou do ideal de maternidade nos moldes que conhecemos hoje surgiu nesse contexto com o objetivo primeiro de manter as crianças vivas.

Longe de ser uma estratégia de cunho emocional, sentimental, focada na relação entre mãe e filho, a instauração do biopoder ocorreu porque, com o surgimento da sociedade burguesa em meio a uma desordem social, surgiu igualmente a necessidade de se cuidar da população para que houvesse mão de obra e sempre mais riquezas; preservar a vida e educar as crianças passaram a ser prioridade para a consolidação da nossa sociedade capitalista. Isso significa que, ao lado da preocupação com a economia ou com a ideologia, havia uma preocupação premente com o corpo físico que precisava garantir o bom andamento do corpo social. Daí as orientações em massa que surgiram com o intuito de fazer com que as pessoas atentassem para "a higiene [...], a arte da longevidade, os métodos para ter filhos de boa saúde e para mantê-los em vida durante o maior tempo possível" (Foucault, 1988, p. 137).

As mulheres assumiram, assim, especial relevância e certo poder no âmbito familiar, porque a elas cabia o dever de fazer funcionar aquele mecanismo. Ou seja, na encruzilhada da saúde e da moral, da educação e do adestramento, do corpo e da alma, as esposas-mães tornaram-se alvo e instrumento de poder. Era necessário atingi-las, pois, por meio delas, as normas políticas, constituídas pelos discursos médico e religioso, conseguiam se infiltrar nos lares que passaram a se higienizar e a se disciplinarizar, e uma melhor ordem social, moral e religiosa estava, então, assegurada. Uma das orientações basilares, por exemplo, era com relação à contracepção, ou seja, havia uma maior preocupação com a sobrevivência do que com a geração. A contracepção era necessária "não para que as crianças não nascessem, mas para que as crianças pudessem viver, uma vez nascidas" (Foucault, 1979, p. 275). Desmistificada a incompatibilidade entre a relação sexual e o aleitamento, as mães eram igualmente orientadas a ficarem com seus filhos e a amamentá-los. Novas regras, portanto, foram codificadas na relação entre mãe e filho, o que impôs de imediato novos saberes, novas definições, novas verdades e, consequentemente, novas práticas coercitivas sobre o papel social da mulher: elas, mais do que nunca, deveriam reinar nos limites do lar para garantir a vida das crianças.

Segundo Perrot (2007), declarou-se nessa época uma verdadeira guerra à mortalidade infantil, ao mesmo tempo em que se criou uma medicalização da maternidade e da primeira infância, passando, mãe e criança, a serem um interesse político e nacional. Afloravam, então, discursos que visavam convencer as mulheres de sua importância com relação aos cuidados com o filho e, para convencê-las, tomavam como parâmetro os discursos religiosos que exaltavam, adoravam o modelo da Virgem Maria.

Toda essa breve história da maternidade é para que possamos ascender à discursividade de peças publicitárias que convocam a imagem da clássica Pietá, com o filho nos braços, e descrever, na reaparição de enunciados, processos de subjetivação. Com efeito, no discurso da PP2, ressoam e produzem efeito de memória, os discursos que subjetivaram, mais precisamente a partir do século XVIII, a mãe abnegada, dócil, comedida e disposta a qualquer sacrifício para garantir a felicidade e o bem-estar de seu filho. Quer dizer, no enunciado "o melhor lugar para o seu bebê ontem, hoje e sempre", juntamente com a imagem do bebê no colo da mãe (numa clara atitude de proteção), retornam as verdades dos discursos médicos, forjados nas tramas do biopoder e de outros que orientavam para a necessidade de a mãe ficar com seu bebê e de amamentá-lo. Silenciam-se quaisquer outras verdades desviantes dessa rede de formulações, verdades que ficaram sujeitas ao esquecimento, absorvidas na memória, como se nunca tivessem existido.

Inscreve-se nessa mesma rede de memória, configurada em um locus privilegiado para a permanência daquilo que merece ser lembrado, um sem número de outras peças publicitárias que nos atingem na contemporaneidade, como as seguintes.

Diante desse paralelismo imagético e verbal, percebemos muito claramente a repetição dos discursos atravessados e constituídos pelas teses do amor sublime. Discursos, como destacado anteriormente, que ingressaram no campo da linguagem publicitária em decorrência dos sentidos produzidos há muito tempo por sujeitos sociais. A existência, hoje, das imagens ícones do amor materno (filhos nos braços) e dos enunciados "quando nasce um bebê, nasce também uma mãe" (PP7); "coração de mãe sempre cabe mais um [...]" (PP8); "cuidaré viver cada momento" (PP9); "nos seus braços encontramos o lar perfeito para a vida" (PPIO), assim como "o melhor lugar para o seu bebê ontem, hoje e sempre" (PP2), está vinculada a redes histórico-discursivas e funciona como um princípio de aceitabilidade, face aos leitores desses dizeres; isto é, as alianças que orientam a produção de sentidos daqueles dizeres apagam as tensões e os confrontos e provocam um efeito de transparência sobre o estatuto da maternidade. E como se não houvesse outros sentidos, outras posições de sujeito, outras verdades ou mesmo outros modos de ser mãe.

Assim, na perspectiva do funcionamento discursivo, aqueles enunciados, atrelados à espessura histórica do acontecimento, inscritos na mesma formação discursiva, constituídos nas mesmas regras de enunciabilidade, irrompem novos, singulares e únicos no acontecimento de peças publicitárias que notadamente reiteram a seguinte verdade-demonstração: a mãe é a principal responsável ("nasce um bebê... nasce uma mãe") pelo cuidado dos filhos ("cuidar é viver; lar perfeito para a vida"), em decorrência do amor sem igual ("coração... sempre cabe mais um") que dedica ou deve dedicar a eles.


Considerações finais

Com o intuito de contribuir com uma reflexão sobre o funcionamento discursivo da linguagem publicitária, atravessada e constituída (também) pelo discurso religioso, foi dado destaque, neste estudo, às práticas de subjetivação/objetivação do feminino atreladas à espessura histórica da discursividade, ao papel da memória na produção e circulação de discursos "verdadeiros", o que possibilitou interpretar duas formas do "eu feminino" restabelecidas e reverberadas pela publicidade na contemporaneidade.

Confrontada com a materialidade das dez peças arregimentadas para este estudo e com as verdades que os discursos ali enunciados convocam, quero concluir reiterando que a existência de enunciados nunca é fortuita ou aleatória, tampouco é o resultado de uma intenção; estão ali excluindo outros enunciados e se correlacionando com outros tantos, todos articulados em um campo de coexistência. Estão, portanto, inseridos em um "domínio associado" de outras formulações, que são repetidas, refutadas ou mesmo negadas, e produzem redes e efeitos de memória. (Foucault, 2007).

Além disso, vale sublinhar que toda produção discursiva passa pelo crivo de um controle, de uma seleção; é organizada e redistribuída de acordo com os mecanismos que determinam o que pode ser dito em certo lugar e em certo momento histórico. A depender disso, alguns dizeres são silenciados, outros, reverberados como discursos verdadeiros. À luz desse procedimento de controle do discurso, chamamos a atenção para a (reinvenção no discurso publicitário de dois famosos modelos de mulheres bíblicas: Eva e o seu oposto, a Virgem Maria. Quando uma é exaltada, a outra é estrategicamente apagada, mas ambas coexistem, e formatam uma matéria memorável, consequentemente, repetível exaustivamente no universo publicitário brasileiro, ao subjetivar e perpetuar movimentos identitários do feminino assentados nas verdades ora da tentação da sexualidade ora da abnegação da maternidade.


Pie de Página

2 Retomando e recriando o momento de sofrimento da Nossa Senhora, particularmente o momento em que ela contempla o filho morto colocado no seu colo, Michelangelo esculpiu, em 1499, uma das obras mais famosas de todos os tempos, a Pietà (Piedade), em exposição na Basílica de São Pedro, no Vaticano.



Referências

Flahaut, F. (2007). Adam et Eve: la condition humaine. Paris: Mille et une nuits.

Foucault, M. (1979). Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

Foucault, M. (1988). História da sexualidade 1: a vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal.

Foucault, M. (2OOI). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.

Foucault, M. (2OO5). Vigiar e punir: nascimento daprisão. Petrópolis: Vozes.

Foucault, M. (2OO6). O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes.

Foucault, M. (2OO7). Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Gregolin, M. R. (2004). Foucault e Pêcheux na construção da análise do discurso: diálogos e duelos. São Carlos: Claraluz.

Gregolin, M. R. (2008). Identidade: objeto ainda não identificado? Estudos da Lingua (gem), v. 6, n. 1, p. 81-97.

Pêcheux, M. (2007). Papel da memória. Em: P. Achard et al. Papel da memória. Campinas: Pontes.

Perrot, M. (2007). Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto.


 

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