Artículo
Rafael Grohmann 1
Willian Fernandes Araújo 2
1 0000-0003-1063-8668. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil. rafaelgrohmann@unisinos.br
2 0000-0002-3271-6690. Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil. waraujo@unisc.br
Recebido: 13/10/2020
Aprovado por pares: 15/07/2021
Submetido a pares: 13/01/2021
Aceito: 24/07/2021
Para citar este artículo / to reference this article / para citar este artigo: Grohmann, R. y Araújo, W. (2021). O chão de fábrica (brasileiro) da inteligência artificial: a produção de dados e o papel da comunicação entre trabalhadores de Appen e Lionbridge. Palabra Clave, 24(3), e2438. DOI: https://doi.org/10.5294/pacla.2021.24.3.8
Resumo
O artigo analisa, por meio de uma pesquisa exploratória, o trabalho de brasileiros em plataformas globais de inteligência artificial (IA), especialmente Appen e Lionbridge, no sentido de destacar o papel da comunicação e da produção de dados para a IA, delineando condições e complexidades do trabalho, enquanto um "chão de fábrica da inteligência artificial". Para isso, a partir de entrevistas com trabalhadores e observações em grupos de WhatsApp e Facebook, chegamos a cinco categorias predominantes: processos de contratação, acompanhamento do tempo e dificuldades na comprovação das horas trabalhadas, falta de confiabilidade da infraestrutura, estratégias de trabalho e definição de trabalho, e compreensão da IA. Com base na análise, sustentamos que, ao contrário de um universalismo, há uma geopolítica no trabalho em plataformas de IA, em um colonialismo por meio da IA. Destacamos as condições materiais de produção de dados e o papel da comunicação entre trabalhadores como solidariedades emergentes e complexas, enquanto fissuras e brechas, a fim de construir estratégias para lidar com o trabalho em plataformas de IA.
Palavras-chave (Fonte Tesauro da Unesco): Inteligência artificial; plataformas; produção de dados; trabalho; comunicação.
Resumen
El artículo analiza, a través de una investigación exploratoria, el trabajo de los brasileños en plataformas globales de inteligencia artificial (IA), especialmente Appen y Lionbridge, con el fin de resaltar el papel de la comunicación y la producción de datos para la IA, describiendo las condiciones y complejidades del trabajo, como un "piso de fábrica de inteligencia artificial". Para tal, a partir de entrevistas a trabajadores y observaciones en grupos de WhatsApp y Facebook, se llega a cinco categorías predominantes: procesos de contratación, seguimiento de tiempos y dificultades para acreditar horas trabajadas, falta de confiabilidad de la infraestructura, estrategias de trabajo y definición del trabajo, y comprensión de la IA. Del análisis sostenemos que, al contrario del universalismo, hay una geopolítica en el trabajo en plataformas de IA, en un colonialismo por medio de la IA. Destacamos las condiciones materiales de la producción de datos y el papel de la comunicación entre trabajadores como solidaridades emergentes y complejas, como grietas y roturas, con el propósito de construir estrategias para afrontar el trabajo en plataformas de IA.
Palabras clave (Fuente tesauro de la Unesco): Inteligencia artificial; plataformas; producción de datos; trabajo; comunicación.
Abstract
The article analyzes Brazilians' work in global artificial intelligence (AI) platforms, especially Appen and Lionbridge, through exploratory research. We highlight the role of communication and data production for AI, outlining labor conditions and complexities as the factory floor. Thus, we interviewed workers and conducted observations in WhatsApp and Facebook groups. We divided the findings into five categories according to workers' perception: hiring processes, time tracking and difficulties proving hours worked, lack of infrastructural reliability, work strategies and definition, and, finally, understanding of AI. Contrary to digital labor universalism, there is geopolitics in AI platform labor. The material conditions of data production and the role of communication among workers stand out as emerging and complex solidarities, as fissures and cracks, to devise strategies that deal with AI platform labor.
Keywords (Source Unesco Thesaurus):Artificial intelligence; data production; platforms; labor; communication.
Introdução
Os debates sobre dataficação e inteligência artificial (IA) estão na pauta da pesquisa em comunicação (Couldry e Mejias, 2019; Gunkel, 2019), porém, até o momento, pouca atenção tem sido dada ao papel do trabalho humano na produção de dados para a automação de um ponto de vista comunicacional. Por sua vez, as investigações sobre o trabalho invisível por trás da IA têm ganhado proeminência (Casilli, 2019; Roberts, 2019; Gray e Suri, 2019), mas sem sublinhar que há um papel da comunicação nesse processo.
Há interrelações entre os processos de comunicação e o trabalho na produção e na circulação de dados (Beer, 2016). Isso se acentua em um contexto de plataformização do trabalho (Grohmann, 2020). As plataformas, enquanto infraestrutura digitais abastecidas por dados e automatizadas por algoritmos (Van Dijck, Poell e De Waal, 2018), são meios de comunicação e produção (Williams, 2005). Isto é, os dados são produzidos e circulados social e midiaticamente por meio delas, não existindo plataformas sem moderação dos conteúdos e sendo muito difícil, devido à escala, a automatização de toda a moderação (Gillespie, 2018; 2020).
Dessa forma, a produção de dados para automatizar processos ou o que chamam "inteligência artificial" — enquanto um nome-marca (Katz, 2020; Crawford, 2021) — requer muito trabalho humano, configurando-se como o ingrediente secreto da automação (Casilli, 2019). O trabalho fantasma por trás da IA é uma forma de minerar o processo dos trabalhadores em busca de dados (Neff, McGrath e Prakash, 2020). Por exemplo, a transcrição de dados de áudios de mídias sociais ou assistentes virtuais reforça a centralidade dos metadados para a economia das plataformas, como reforçam Van Doorn e Badger (2020). Portanto, trabalhar para plataformas globais de IA é um tipo de trabalho de dados para automação. Além disso, os dados são uma forma de capital para as empresas de plataforma, expropriando e colonizando os recursos dos trabalhadores, especialmente em países periféricos (Couldry e Mejias, 2019).
Há circulação de dados (especialmente os chamados "dados bons") apenas com a circulação do trabalho em plataformas globais de IA (Beer, 2016). De acordo com Tubaro, Casilli e Coville (2020, p. 4), "as empresas de IA dependem fortemente de recursos de dados, incluindo não apenas dados brutos, mas também anotações que adicionam significado extra ao associar cada ponto de dados, como uma imagem a uma tag relevante". Esses dados não são produzidos uniformemente ao redor do mundo, mas apresentam marcas das origens de seus trabalhadores.
O presente artigo tem por objetivo analisar o trabalho de brasileiros em plataformas globais de IA, especificamente Appen e Lionbridge, no sentido de evidenciar o papel da comunicação e da produção de dados para a IA. Por um lado, há processos comunicacionais entre trabalhadores e, por outro, sistemas publicitários e outras indústrias da comunicação dependem do trabalho dessas pessoas. Além disso, destacamos que, ao contrário de uma força de trabalho global, essas plataformas reforçam um "colonialismo por meio da IA".
Trabalho e inteligência artificial
As narrativas dominantes sobre IA tendem a invisibilizar o trabalho humano presente no processo de produção de dados para automação, o que Ekbia e Nardi (2017) chamam "heteromação". Conforme mostram Woodcock e Graham (2019, p. 58), "há tarefas que podem, em teoria, ser realizadas por IA, mas é mais barato e/ou mais rápido simplesmente terceirizar para trabalhadores humanos".
Empresas como Amazon Mechanical Turk (AMT), Appen, Lionbridge, Mighty AI, Clickworker e Spare5 desempenham um papel importante como produtores de dados para a IA, com uma variedade de atividades de trabalho em suas plataformas, incluindo a produção de dados para o treinamento de carros autônomos. Os discursos dessas plataformas costumam circular sentidos de futuro e progresso. O slogan da Appen, por exemplo, é: "confiança para desenvolver IA com dados de excelência — a inteligência artificial vai melhorar o mundo". Isso ajuda a consolidar, entre os trabalhadores, imaginários positivos de IA e dataficação (Soriano e Cabanes, 2019; Beer, 2019).
O trabalho por trás da IA é denominado "trabalho fantasma" (Gray e Suri, 2019), "trabalho do clique" (Casilli, 2019) e "microtrabalho" (Tubaro e Casilli, 2019). Essas metáforas são tentativas de nomear atividades de trabalho para produzir dados para a IA. Seja qual for o nome, essas pessoas trabalham para plataformas globais de IA. O caráter global desses sistemas aponta para um fator importante na complexificação do trabalho humano por trás da IA: a dimensão geopolítica das plataformas. O trabalho em plataformas globais de IA é diferente do circuito de trabalho que envolve o iPhone, por exemplo (Qiu, Gregg e Crawford, 2014). Naquelas, não há divisão entre a produção de baterias de lítio em um local e a produção de software em outro, mas há algumas empresas do Norte Global gerenciando e controlando uma multidão de trabalhadores de vários países do mundo, principalmente do Sul Global. As plataformas globais de IA não eliminam espaços físicos e dependem de infraestruturas materiais (Milan, 2018). A IA é, portanto, "a manifestação do capital altamente organizado e amparado por vastos sistemas de extração e logística, com cadeias produtivas que envolvem todo o planeta" (Crawford, 2021, pp. 18-19). Mais do que apenas uma indústria global, a IA também é um modo de ver e agir sobre a realidade, como uma nova forma de exercício do poder (Crawford, 2021).
As empresas e os trabalhadores da IA podem estar localizados em diferentes regiões, e os trabalhadores geralmente trabalham em suas casas. Mas isso não significa necessariamente que as tarefas realizadas pelos trabalhadores sejam globais. Às vezes, eles estão localizados no bairro, na cidade ou no país do trabalhador, como análise de publicidades ou tarefas de tradução de texto. Além disso, os métodos de pagamento variam. A AMT, por exemplo, paga apenas aos trabalhadores americanos e indianos em dinheiro. No Brasil, os trabalhadores recebem créditos na loja da Amazon. Outras empresas, como Appen e Lionbridge, pagam aos trabalhadores em dólares, o que faz com que eles se vejam como parte de uma "classe trabalhadora mundial" (Soriano e Cabanes, 2019). Isso significa que não há homogeneidade nas práticas nas plataformas globais de IA. Ou seja, não há um universalismo com relação ao trabalho em plataformas ou uma noção homogênea e única da força de trabalho global, portanto há diversos cenários para a relação entre IA e trabalho.
A maioria das pesquisas em plataformas globais de IA concentra-se no Norte Global, como Irani (2015), Milland (2017), Gray e Suri (2019) e Ludec, Tubaro e Casilli (2019), destacando países como Estados Unidos e França, com uma centralidade da plataforma AMT. No entanto, a pesquisa de Ludec et al. (2019) revela dados interessantes para o estudo de plataformas globais de IA fora dos Estados Unidos. Na França, há cerca de 500.000 trabalhadores registrados na AMT. Esse é um número muito menor do que outras plataformas como ClixSense (7.000.000 trabalhadores), Mi-croworkers (1.215.829), Clickworker (1.200.000) e Appen (1.000.000). Isso revela a impossibilidade de generalizar a experiência localizada dos trabalhadores da AAMT de países como os Estados Unidos. Como afirmamos, não existe um universalismo do trabalho por plataformas.
Um dos poucos estudos que se afastam dessa tendência do Norte Global é o de Graham, Lehdonvirta e Hjorth (2017), que se concentra na África, mas foi escrito por autores do Norte Global e não foca exclusivamente em plataformas de IA. Schmidt (2019), em sua pesquisa sobre trabalhadores que treinam IA para carros autônomos, constata que a maioria dos trabalhadores é da Venezuela.
Kalil (2020) e Moreschi, Pereira e Cozman (2020) pesquisaram brasileiros que trabalham na AMT. Kalil (2020) entrevistou 52 pessoas, geralmente homens solteiros e graduados com cerca de 30 anos. O principal motivo para trabalhar nessas plataformas é a necessidade de renda adicional. Moreschi et al. (2020) apresentam resultados de pesquisa com 149 brasileiros trabalhando na AMT e observações em um grupo do WhatsApp. O perfil é semelhante ao encontrado por Kalil (2020): homens brancos, 29 anos e formalmente desempregados há muito tempo. Isso revela como o trabalho dos turkers está intimamente ligado à histórica informalidade do trabalho no Brasil. Essas pesquisas também revelam o papel da comunicação na organização dos trabalhadores, como solidariedades emergentes ou informais (Soriano e Cabanes, 2019).
Por um lado, há conexões entre as tarefas dos trabalhadores de plataformas de IA em muitas partes do mundo. Por outro lado, há especificidades — nesse caso, do Brasil — com relação a pagamento, tarefas, condições de trabalho, dificuldades de acesso à plataforma e problemas de idioma. Nesta pesquisa especificamente, tratamos de plataformas globais de IA e sua relação com trabalhadores brasileiros em uma dinâmica global-local, mas sabemos da existência de, ao menos, cinco plataformas brasileiras de microtrabalho, o que pode estabelecer outras relações de comunicação e trabalho para a produção de dados.
Entendemos o papel da comunicação nesse processo de duas maneiras. Em primeiro lugar, enquanto processos comunicacionais entre os próprios trabalhadores e entre eles e as plataformas, no sentido de que as interações com as plataformas são, elas próprias, relações de trabalho. Em segundo lugar, as indústrias da comunicação, incluindo empresas de mídias sociais, necessitam do trabalho da produção de dados para alimentar seus sistemas de IA. Por exemplo, a circulação da publicidade depende da avaliação das campanhas por esses trabalhadores. Da mesma forma, a circulação e o combate à desinformação passam pelo trabalho em plataformas de IA (Ong e Cabanes, 2019).
Metodologia
Entre fevereiro e abril de 2020, conduzimos uma pesquisa exploratória, de caráter eminentemente qualitativo, com brasileiros que trabalham em plataformas de IA além da AAMT, especialmente Appen e Lionbridge. Entendemos a pesquisa exploratória como um conjunto de práticas metodológicas desenvolvidas para oferecer novas formas para analisar a realidade (Reiter, 2017). Para tanto, fornecemos diretrizes sobre o processo de pesquisa, com o objetivo de demonstrar sua confiabilidade e validade (Reiter, 2017). Com base nesse referencial metodológico, iniciamos com uma busca on-line preliminar de conteúdos sobre trabalho de plataforma em blogs e canais do YouTube brasileiros sobre o tema. Com relação a esses conteúdos e considerando os estudos anteriores na literatura sobre o trabalho digital no Brasil (Moreschi et al., 2020; Abilio, 2020; Grohmann e Qiu, 2020), fomos capazes de criar a seguinte lista de plataformas de IA além do Mechanical Turk: Appen, Lionbridge, Clickworker, MightyAI, Clixsense, Pactera, iSoftStone e Streetbees.
A partir desse ponto, investigamos essas plataformas no LinkedIn, uma plataforma de rede social focada em negócios e emprego. Esse serviço foi escolhido devido aos seus dados públicos sobre a relação entre trabalhadores e plataformas, possibilitando uma segmentação por país. Para construir uma autoapresentação profissional, muitos brasileiros se definem no LinkedIn como "funcionários" dessas empresas, o que facilitou a localização de trabalhadores vinculados a essas plataformas globais de IA. Nossa investigação encontrou um número significativo desses trabalhadores nos perfis do LinkedIn da Appen e da Lionbridge. No perfil do LinkedIn da Appen, os brasileiros eram o segundo maior grupo de nacionalidade (776 trabalhadores, no momento da escrita), atrás apenas dos americanos e seguidos por filipinos, indonésios e indianos. No perfil da Lionbridge no LinkedIn, 137 brasileiros foram listados, representando o décimo quarto maior grupo de nacionalidade. Dessas duas listas de centenas de brasileiros, selecionamos 63 trabalhadores que pudemos contatar por meio de uma mensagem no LinkedIn, que limita os contatos a membros que tenham conexões em comum.
Essa observação inicial de que Appen e Lionbridge tinham os maiores números de trabalhadores brasileiros foi corroborada por uma busca por grupos on-line que realizamos no Facebook. Encontramos grupos de trabalhadores das referidas plataformas com um número significativo de membros: os maiores grupos que faziam referência às plataformas Appen e Lionbridge tinham, respectivamente, cerca de 4.000 e 1.000 trabalhadores. Nesses grupos, encontramos um intenso ciclo de conversas com dezenas de postagens diárias. A maioria dos debates teve como tema algumas especificidades das experiências comuns dos trabalhadores dessas empresas.
A partir daí, realizamos observação participante durante o período da pesquisa sobre os dois maiores grupos sobre o assunto no Facebook (Hewson, 2014). Nesse período, interagimos com os integrantes dos grupos, com o objetivo de mapear os temas e as práticas de trabalho que discutiam. Também tivemos contato com grupos do WhatsApp anunciados nos grupos do Facebook que analisamos. Nesses contatos, fizemos o convite para participar da pesquisa por meio de entrevistas. A partir disso, conduzimos entrevistas semiestruturadas com 16 trabalhadores por meio de aplicativos de mensagens (Brinkmann, 2014). Além disso, entramos em contato com pessoas listadas como "funcionários" nos perfis do LinkedIn da Appen e da Lionbridge e com os membros dos grupos on-line com os quais interagimos e que manifestaram interesse em dar entrevistas. Por fim, aplicamos um questionário a mais 15 trabalhadores que concordaram em colaborar com a pesquisa. Quanto aos esforços de pesquisa, a amostra foi composta por notas e trechos de observação participante, 16 entrevistas semiestruturadas e 15 questionários aplicados. Todas as citações feitas aos trabalhadores entrevistados e às conversas observadas nos grupos pesquisados foram anonimizadas.
Reconhecendo a diversidade do corpus da pesquisa exploratória, composto por anotações sobre observações, respostas a pesquisas e entrevistas on-line, realizamos uma análise exploratória com o objetivo de mapear questões recorrentes. Chegamos, então, a cinco categorias: processos de contratação; acompanhamento do tempo e dificuldades na comprovação das horas trabalhadas; falta de confiabilidade da infraestrutura; estratégias de trabalho e, finalmente, sua definição de trabalho e compreensão de IA. Todas as categorias e seus tipos estão interligados e alguns deles se sobrepõem. A categorização proposta neste artigo pretende ser um esforço exploratório que pode ajudar a compreender as diversas dimensões em que atuam a comunicação no trabalho em plataformas de IA.
Entrando no universo da pesquisa
Notamos uma gama significativa de diferentes trabalhos executados por esses trabalhadores. Organizadas em diferentes "projetos", essas "tarefas" podem ser tipos muito diferentes de produção de dados, com um papel central da comunicação: classificação de anúncios, correção de respostas de assistentes virtuais, correção de informações de mapas, produção de dados pessoais, análise de páginas do Facebook, categorização de imagens, respostas a pesquisas, transcrição, tradução, legendagem e gravação de áudio ou vídeo, entre outras atividades. O rol de tarefas ajuda a entender que empresas de mídias sociais e processos envolvendo publicidade dependem do trabalho humano que alimenta a IA.
Durante as entrevistas, analisamos como esses trabalhadores entendem as vantagens e as desvantagens desse tipo de trabalho. As principais vantagens observadas estão relacionadas à flexibilidade, que foi o tema mais verbalizado: "posso trabalhar enquanto assisto TV, enquanto assisto alguma série de TV. Eu prefiro porque é uma hora que posso desligar meu cérebro e ainda ganhar dinheiro", disse Daiana, uma estudante de Odontologia de 25 anos, que mora com os pais. Laura, de 41 anos, argumentou que essa flexibilidade a ajuda a "trabalhar sem sair de casa para eu cuidar do meu filho de 6 anos e ainda fazer as tarefas domésticas". Outra vantagem citada com frequência é o pagamento em dólares.
A desvantagem mencionada com mais frequência é a falta de segurança no emprego, um aspecto que molda a compreensão geral dos trabalhadores sobre suas atividades. Essa falta de estabilidade envolve múltiplos fatores, como a possibilidade de rescisão repentina ou não pagamento de salários. Geraldo, um trabalhador de tecnologia da informação de 50 anos, disse:
há algumas tarefas que não consigo entender e, se classificam minhas respostas como erradas, vou perder 50% do meu salário ou perder minha conta. Então, é uma grana legal, em dólares, mas não tenho segurança. As regras mudam muito e nem sempre somos informados sobre isso.
A sensação de instabilidade contínua combinada com a baixa remuneração são fatores que estão relacionados com a evidência de que a maioria dos trabalhadores com quem interagimos considera esse apenas um trabalho secundário. Embora muitos deles estejam desempregados, a compensação que recebem dessas plataformas geralmente não é suficiente para cobrir suas necessidades financeiras. Isso está em consonância com estudos sobre trabalho por plataformas no Sul Global, em especial o trabalho realizado em domicílio — um misto de sensação de oportunidade, precariedade e insegurança. Além disso, como ressaltam Soriano e Cabanes (2019), por um lado, há a sensação de que fazem parte de uma "classe trabalhadora global" e, por outro, a intensificação do trabalho precarizado em seus locais.
Uma questão importante na comunicação entre trabalhadores brasileiros nos grupos do Facebook e do WhatsApp é o processo seletivo pelo qual os trabalhadores devem passar antes de serem escolhidos para projetos nessas plataformas. Geralmente, os processos seletivos consistem na apresentação de um currículo em inglês e na aprovação em testes sobre as diretrizes dos projetos, também em inglês. Eles são vistos como obstáculos difíceis a serem superados: "é impossível que eu seja o único que está sendo rejeitado o tempo todo", diz um homem em um grupo do Facebook.
Outro objetivo na análise exploratória da comunicação entre trabalhadores foi compreender como eles percebem suas práticas de trabalho no contexto da indústria global de plataformas de IA. Embora este não tenha representado um tema central nas conversas dos trabalhadores nos grupos on-line com os quais interagimos, foi possível encontrar algumas discussões sobre o assunto — e ajudam a montar o rol de imaginários em torno de suas atividades de trabalho. Em uma postagem, um trabalhador pergunta a outros membros do grupo: "gente, só por curiosidade: quando alguém pergunta a vocês qual é o seu trabalho, o que vocês respondem? Sempre digo que trabalho para [plataforma] que é uma empresa on-line, mas nunca me aprofundo... e vocês?" Outro trabalhador responde: "eu digo que trabalho melhorando uma inteligência artificial ultrassecreta".
As noções de dados, algoritmos e IA apareceram apenas esporadicamente e no contexto de outras discussões, como exemplifica a última citação. Consideramos possível sustentar que muitos trabalhadores em grupos on-line não se veem como parte da indústria de IA, vendo seu trabalho em um sentido mais prático e próximo ao seu cotidiano, por exemplo, categorizar, avaliar, segmentar ou corrigir informações, comportamentos, conteúdos ou anúncios. Em nossas entrevistas, a situação foi semelhante. Questionada como ela entende a relação entre seu trabalho e a IA, Daiana diz: "para mim, sempre foi muito claro. Sempre soube que estava fazendo isso para treinar os algoritmos das empresas. Eles disseram isso. Eles dizem que nosso trabalho é essencial para melhorar os mecanismos de busca, para treinar seus algoritmos". Outras percepções afirmam que o papel de brasileiros nesses sistemas é o de assimilar e traduzir aspectos culturais para a realidade do país. Além disso, em geral, quando foram questionados sobre como eles acham que seu trabalho ajuda a criar ou treinar sistemas de IA, as respostas focam na ideia de melhorar algoritmos e ajudar os usuários. Essas visões ajudam a invisibilizar o papel desses trabalhadores na produção de dados para a IA, inclusive com auxílio em sistemas de publicidade, por exemplo, que não existiriam nas plataformas digitais sem o trabalho dessas pessoas.
Contudo, ao olharmos para o cotidiano desses trabalhadores para as plataformas de IA, queremos enfatizar esse olhar "desde baixo" para a IA, como um chão de fábrica localizado em um país periférico. Mas, longe de uma análise focada na ausência, trata-se de destacar como os trabalhadores criam brechas, fissuras e resistências em seus cotidianos nas relações com algoritmos e plataformas.
Controle do tempo e dificuldades para comprovar as horas trabalhadas
Nas conversas on-line e nas entrevistas que realizamos, o processo de pagamento é um assunto que parece estar conectado com muitas das práticas dos trabalhadores com relação ao trabalho em plataformas globais de IA, em consonância com pesquisas sobre AMT no Brasil (Moreschi et al., 2020). Algumas plataformas, como Appen, exigem que os trabalhadores comuniquem as horas trabalhadas. Embora seja razoável supor que essas plataformas tenham capacidade tecnológica para monitorar o trabalho, elas delegam pelo menos parte desse controle aos trabalhadores: cada um deve apresentar quantas horas despendeu mensalmente na execução das tarefas. Isto é, o gerenciamento automatizado parece não funcionar na hora de pagar os trabalhadores, transferindo a eles todas as responsabilidades.
É comum encontrar narrativas de trabalhadores sobre rejeições e divergências quanto às horas trabalhadas. Daiana afirma que:
[as plataformas] são muito desorganizadas. Eles questionam horas de trabalho. Eles dizem 'não, não, não, de acordo com nosso sistema, você não trabalhou nessas horas'. E então é muito difícil para você provar o oposto. Às vezes, eu apenas calo a boca e aceito, porque senão você não vai receber nada.
Sobre isso, os trabalhadores compartilham experiências sobre como verificar as atividades realizadas durante o horário de trabalho. Em um grupo do Facebook, uma mulher reclamou:
parece bobo, mas faço de tudo para cumprir a cota de cinco a sete dias úteis por semana. E por alguma razão, o sistema louco parece estar implicando comigo. Não é exagero dizer que recebo pelo menos dois [avisos do sistema] por mês, e NUNCA são verdadeiros. É duro ser acusada o tempo todo.
Como a primeira citação desta seção ilustra, há nessas comunicações dos trabalhadores um imaginário de inevitabilidade, de que qualquer reclamação sobre essas acusações falsas é inútil e pode prejudicar as relações dos trabalhadores com as plataformas. Em um grupo do Facebook, um homem diz: "um colega passou por uma situação semelhante. Ele enviou vários print screens que comprovam o término do seu trabalho e eles nunca as aceitaram, infelizmente. Então, ele foi retirado do projeto em determinado momento". Outro trabalhador resume esse ponto: "reclame ou não, não importa se você tem suas horas registradas, no final você terá que aceitar o que eles querem".
Isso revela que, por um lado, existe um imaginário de dados tomandoos como imparciais, inevitáveis e inatingíveis (Beer, 2019). Contudo, a ideia de uma dataficação que automatiza todos os processos é falha, pois os trabalhadores precisam gerir, eles próprios, o tempo de trabalho, evidenciando que, mesmo na produção de dados para a própria empresa, não há uma automação completa. Esse é um dos pontos que faz os trabalhadores se comunicarem entre si em busca de táticas e estratégias para trabalhar em plataformas de IA. Além disso, as desconfianças e as acusações das plataformas com relação aos trabalhadores — como se eles fossem desonestos e golpistas — é uma característica central das plataformas de trabalho (Grohmann et al., no prelo).
Falta de confiança na infraestrutura
O contraste entre os imaginários de dados — e suas infraestruturas — e a sua realização na prática fazem com que haja uma falta de confiança nas infraestruturas, fator central nos processos de trabalho dos brasileiros em plataformas de IA. Essas dificuldades técnicas podem variar de uma plataforma para outra e entre projetos em uma mesma plataforma. Durante o processo de pesquisa, no entanto, encontramos diferentes narrativas sobre problemas nas plataformas, como bugs, aplicativos que não funcionam, perdas de conexão e dificuldades com relação ao pagamento.
A primeira camada de instabilidade pode ser observada nas estruturas dos sistemas que os trabalhadores utilizam para realizar suas tarefas. Nas entrevistas, foi possível compreender que essas dificuldades moldam as práticas dos trabalhadores e afetam os processos produtivos. Tarcila, uma estudante de Direito de 27 anos, relata:
trabalhei em um projeto da empresa Facebook cujo aplicativo tinha muitos erros, muitos bugs... [...] Tinha que analisar 30 anúncios, e, às vezes, abria o aplicativo e havia apenas 15. [...]. Às vezes eu mandava o print screen para o Appen e eles não aceitavam... muita confusão.
Nos grupos do Facebook e do WhatsApp, as narrativas sobre "bugs" nas plataformas apresentaram distintos sentidos com relação ao trabalho. Como descreveu Tarcila, são comuns relatos sobre perda de horas trabalhadas. Uma trabalhadora em um grupo do Facebook pergunta se ela pode ser removida de um projeto por não conseguir trabalhar devido a um bug que bloqueou o acesso à ferramenta de classificação: "não consigo classificar anúncios há dias por causa desse bug. Hoje recebi o seguinte e-mail: 'Olá, você está recebendo esta mensagem porque nossos registros mostram que, durante a semana, você não completou os requisitos para o projeto'". Essas discussões são marcadas por expressões de sentimentos como frustração e tristeza.
Contudo, os trabalhadores desenvolvem e comunicam táticas para superar essas dificuldades técnicas. Isso representa o conhecimento da lógica técnica desses processos de trabalho, estratégias baseadas nas experiências de trabalhadores e sua comunicação em grupos on-line. Na mesma postagem mencionada no último parágrafo, outro trabalhador respondeu à pergunta, com uma sugestão sobre como evitar falhas no sistema: "você tem que desinstalar o aplicativo do Facebook do seu celular e instalar essa versão que vou colocar aqui. Faço isso todos os dias (desinstalo e instalo novamente) porque meu celular faz a atualização e não consigo impedi-lo". Como evidencia o enunciado, muitas conversas sobre bugs apresentam soluções desenvolvidas pelos trabalhadores e que não estão contempladas em manuais e diretrizes das plataformas.
Essas narrativas sobre a frequente ineficiência dos sistemas das plataformas afastam os imaginários de tecnologias avançadas e inabaláveis em torno da IA. Trata-se, antes, de pensar o "chão de fábrica da inteligência artificial". O modo como os trabalhadores experienciam a relação com as plataformas e suas infraestruturas — enquanto propriamente infraestruturas midiáticas (Plantin e Punathambekar, 2019) — revela um olhar "desde baixo" para a IA, ancorado na vida cotidiana e suas contradições. Problemas como perda de conexão com a internet e falhas em dispositivos móveis são frequentes e moldam os processos produtivos e comunicacionais dos trabalhadores.
Por fim, outra falta de confiança estrutural para os trabalhadores é o sistema de pagamento. Como os processos podem diferir significativamente de uma plataforma para outra, o pagamento dificulta as rotinas dos trabalhadores e suas relações com as plataformas globais de IA. Os trabalhadores descrevem esses processos como complexos e onerosos, como uma dinâmica que envolve uma variedade de métodos e plataformas financeiras. Assim, a comunicação entre trabalhadores auxilia nos processos de recebimento do pagamento, a fim de evitar perdas financeiras. Daiana explica seus métodos para maximizar os ganhos:
na Appen, você é pago por meio de outra plataforma chamada Payo-neer, que cobra três dólares por saque. Se não tenho contas a pagar, junto uma grande quantia de dinheiro e diminuo o número de saques. Na Lionbrige, posso economizar usando a plataforma Husky [...]. Os bancos brasileiros tradicionais cobram altos impostos para receber dinheiro estrangeiro. Esta plataforma cobra apenas 3,5% do valor que você receberá. Então, para mim, isso é bom porque os bancos podem cobrar até 25 dólares, uma quantia significativa considerando o valor do meu salário.
Em grupos on-line de trabalhadores brasileiros, as discussões sobre essas estratégias são frequentes. Numa postagem em que um trabalhador pede ajuda para evitar as altas taxas de um banco brasileiro, outro trabalhador respondeu: "gente, pelo amor de Deus, não repassem diretamente para o banco, não! Eles vão te assaltar. Fui roubado por todos eles [bancos]. A melhor opção é o Husky [plataforma]".
As relações com os sistemas de pagamento jogam com o imaginário de serem "trabalhadores globais". Porém, as dificuldades evidenciam contradições envolvendo as suas localizações em território brasileiro (Soriano e Cabanes, 2019). Isto é, as dinâmicas locais-globais fazem com que, apesar de imaginários globais relacionados às plataformas de IA, os trabalhadores estejam "amarrados aos locais em que vão para a cama todos os dias" (Graham e Anwar, 2019, s/p).
Estratégias dos trabalhadores
Conforme discutimos nas seções anteriores, a comunicação entre os trabalhadores como formas de solidariedades emergentes (Soriano e Cabanes, 2019) é uma prática que molda a dinâmica desses grupos on-line. São táticas e estratégicas de trabalhadores em suas vidas cotidianas no "chão de fábrica da inteligência artificial", enquanto "fissuras algorítmicas" (Ferrari e Graham, 2021) ou "resistências algorítmicas" (Treré, 2018). Isso revela que não há inevitabilidade por parte dos processos programados pelas plataformas de IA, mas modos de organização e comunicação por parte dos trabalhadores, os quais atuam a partir das brechas.
Muitas estratégias discutidas nesses grupos dizem respeito ao aumento ou à manutenção dos ganhos dos trabalhadores, envolvendo dilemas entre a gestão das próprias sobrevivências no trabalho e a colaboração com outros trabalhadores. Diante da crise econômica, o trabalho nessas plataformas pode representar um fator importante para a sobrevivência econômica desses trabalhadores.
Em nossas conversas com os trabalhadores, diferentes estratégias foram mencionadas como formas de aumentar os ganhos — enquanto forma de sobrevivência no trabalho — como a inscrição em diferentes plataformas e para projetos distintos. Renata, tradutora de 46 anos, explica seu método: "minha estratégia para aumentar a remuneração é tentar combinar a realização de várias tarefas pequenas e simples com trabalhos com valores maiores".
Sobre esse assunto, observamos tensões com relação aos trabalhadores não qualificados para as tarefas às quais se candidatam. Tarcila explica que se candidata a muitos projetos e depois tenta lidar com os conhecimentos específicos necessários para realizar as tarefas: "tem um projeto que é para quem fala alemão. Não falo alemão, mas, tipo, eu poderia me virar... posso tentar fazer esse projeto em casa". Por sua vez, Marta, uma doutoranda de 27 anos, reclama daqueles que não falam inglês, mas se candidatam a projetos: "você tem que saber pelo menos inglês básico, e a maioria das pessoas não tem isso. Eles só veem uma oportunidade de dinheiro fácil e seu trabalho não é de boa qualidade". Daiana explica: "as pessoas mentem muito em seus currículos". Marta destaca a tradução on-line como uma ferramenta que os trabalhadores usam para o que ela chama "trabalho de baixa qualidade": "as pessoas pensam que o tradutor on-line é bom o suficiente, então eles entregam um trabalho insatisfatório".
Nos grupos on-line que acompanhamos, essa tensão é ainda mais evidente. Foi possível encontrar um número significativo de postagens em que o conhecimento da língua surge como tema em disputa. Em uma postagem em que um trabalhador pergunta se ele pode fazer tarefas em inglês apenas usando o Google Tradutor, outro trabalhador responde: "você pode usar, mas tome cuidado porque, se você quiser continuar no projeto, é melhor não usá-lo ou, então, tentar sempre corrigi-lo. Do contrário, em seis meses eles não renovarão seu contrato". Em outro post com o mesmo tema, outro trabalhador contesta essa versão: "eu sempre usei o Google e foi tranquilo, contrato renovado. Isso é lenda urbana". Em outras discussões, os trabalhadores reclamam sobre o que eles percebem como um sentimento de superioridade e hipocrisia daqueles que criticam quem não domina a língua inglesa. Um trabalhador protesta:
eu pensei que essa era um grupo de apoio e não um tribunal... pedir ajuda não significa que eu não sei inglês ou que sou estúpido. Você não sabe o suficiente sobre a vida das pessoas para especular assim. Tem gente que não perde a oportunidade de fazer os outros se sentirem um lixo, né?
Na mesma direção, em outro post, um trabalhador fala:
vamos ser sinceros, grande parte das pessoas que estão aqui não sabem falar inglês. Então, não venha me dizer que, se a pessoa não souber, que não vai conseguir passar no teste, porque eu garanto que todo mundo já usou ou ainda usa algum tipo de tradução automática.
Essas tensões revelam, por um lado, o que Soriano e Cabanes (2019) denominam "solidariedades empreendedoras", as quais envolvem contradições entre sentimentos de colaboração com outros trabalhadores e intensificação da competição entre colegas, em linha com uma racionalidade neoliberal (Dardot e Laval, 2013). Por outro, revelam brechas — no sentido de fissuras ou resistências — com relação ao esperado por parte deles pelas plataformas. São táticas para sobrevivência no "chão de fábrica da inteligência artificial".
Geopolítica das plataformas e colonialismo por meio da IA
O "chão de fábrica da inteligência artificial" não apresenta o mesmo "chão" em todos os lugares. As desigualdades e as lutas em torno do trabalho humano por trás da IA têm uma forte dimensão geopolítica. Os enunciados dos trabalhadores revelam as condições materiais de produção de dados que são localizadas. Não se trata de uma produção homogênea nem de condições iguais. Por que será que as plataformas globais de IA precisam dos venezuelanos para treinar dados para carros autônomos (Schmidt, 2019)? Por que os filipinos são os que mais trabalham com moderação de conteúdo (Roberts, 2019)? A IA, como projeto tecnopolítico e econômico, baseia-se nessas desigualdades, apropriando-se de trabalhadores em regiões periféricas, como a América Latina. A circulação das lutas dos trabalhadores (Dyer-Witheford, Kjosen e Steinhoff, 2019) não ocorre da mesma forma em todas as partes do mundo. O trabalho humano por trás da IA depende mais de alguns humanos do que de outros — principalmente com marcadores geográficos, como os que estamos vendo aqui — além de raça e gênero, como mostram Atanasoski e Vora (2019).
As tensões sobre o uso de tradutores on-line nas práticas dos trabalhadores de plataforma de IA trazem esse tema de forma mais evidente em nossa análise. A maior parte do discurso público sobre IA enfatiza seu potencial computacional, que geralmente é retratado como uma força que pode transformar completamente a sociedade (Dyer-Witheford et al., 2019). Embora a dataficação seja posicionada como um elemento-chave nas infraestruturas de IA, o debate sobre sua produção ainda é algo secundário, e essas plataformas anunciam os seus conjuntos de dados de treinamento como "fontes confiáveis" produzidas por "profissionais qualificados".
No entanto, as perspectivas dos trabalhadores nos apresentam um cenário mais complexo e multifacetado envolvendo a produção de dados e o papel da comunicação e do trabalho humano para a IA. Computacionalmente, os dados sempre representaram a abstração de fenômenos reais (Wirth, 1985). Observando criticamente, os dados usados na indústria de IA não podem ser considerados matéria natural, que é capturada "do mundo de forma neutra e objetiva" (Kitchin, 2014, p. 6), mas são sempre produzidos e circulados socialmente (Beer, 2019; Couldry e Mejias, 2019). Os dados para IA são produzidos por processos complexos que envolvem grupos diferentes de trabalhadores, em diferentes contextos geográficos, com distintos marcadores sociais — algo não ressaltado por este artigo, mas que está presente em outras pesquisas nossas e de outros autores (Atanasoski e Vora, 2019). Em outras palavras, com base em nossa análise, argumentamos que os dados produzidos pelas plataformas globais da indústria de IA são moldados por essas condições de trabalho e comunicação, com o trabalho de brasileiros funcionando como elemento de um colonialismo por meio da IA.
A IA, enquanto epistemologia e política moderna, já é um artefato colonial, como ressaltam Ali (2016) e Katz (2020) — isto é, a própria IA como colonialismo. Então, se, por um lado, entender as relações entre colonialismo e IA envolve pensar como os recursos são expropriados de pessoas em países da América Latina para reforçar plataformas baseadas no Norte Global e seus mecanismos de extração de valor (Couldry e Mejias, 2019), por outro, como ressalta Ricaurte (2019), trata-se de pensar novas formas de colonialismo digital como a continuidade do colonialismo por meio de processos de IA.
A história de vida de trabalhadores brasileiros — marcadas pela constância do trabalho informal e pela precariedade enquanto norma — encontra nas plataformas globais de IA mais uma continuidade da insegurança como norma de vida, agora embalada por imaginários tecnológicos— também ocidentalizados e coloniais — de que, por exemplo, se sentem satisfeitos (ou até deslumbrados) por estar melhorando sistemas "ultrassecretos" de uma importância global. De fato, eles sustentam esses sistemas (Crawford, 2021) — que foram projetados às suas revelias e a todo tempo os acusam de serem desonestos em suas ações. E os trabalhadores enfrentam inúmeras dificuldades com relação às infraestruturas das plataformas, que se colocam como neutras.
Dessa forma, as plataformas (globais) de IA, como Appen, Lionbridge e AMT, são dispositivos centrais na manutenção da colonialidade do poder e do saber (Quijano, 2000; Mignolo, 2014). Isso é materializado nas infraestruturas das plataformas de IA e em suas formas de gerenciamento e interação com os trabalhadores. As estratégias de trabalhadores, por sua vez — enquanto fissuras, brechas e resistências algorítmicas — são formas de sobrevivência a partir da construção de vínculos — enquanto relações de comunicação — com outros trabalhadores.
Conclusões
Neste artigo, a partir de uma pesquisa exploratória com trabalhadores brasileiros de plataformas globais de IA, especificamente Appen e Lionbridge, oferecemos um exemplo de como os debates sobre IA e dataficação de uma perspectiva comunicacional e da América Latina não podem esquecer o papel de trabalhadores que produzem e treinam dados para a IA, enquanto um chão de fábrica da IA. Sem trabalho humano não há automação ou IA. E, quando falamos disso, significa que há determinados trabalhadores em condições específicas de trabalho.
Esta pesquisa exploratória envolveu um corpus diversificado composto por entrevistas, respostas de questionário e observações. Embora o estudo abranja um número limitado de trabalhadores, os resultados são significativos e apontam para algumas tendências. A partir deste esforço, concluímos que a dinâmica de trabalho dos brasileiros que atuam em plataformas globais de IA é complexa e evidencia diversas especificidades para além de ideias como "força de trabalho global" ou algo nessa direção.
A pesquisa corrobora a hipótese de uma taskificação do trabalho, como afirma Casilli (2019), e acrescentamos a dimensão geopolítica, para afirmar que não existe um universalismo envolto na plataformização do trabalho. O trabalho em plataformas por trás das empresas globais de IA revela algo mais profundo com relação às condições de trabalho em países da América Latina, como o Brasil, onde o gig (ou o "bico", em português informal) é a norma permanente de vida da classe trabalhadora e cuja economia é baseada na informalidade historicamente, antes do trabalho em plataformas.
Como a análise revelou, a comunicação entre trabalhadores representa uma prática importante que molda a forma como eles entendem suas atividades de trabalho, como se organizam em solidariedades emergentes e se orientam em suas interações com essas plataformas, enquanto fissuras, brechas e resistências algorítmicas. Em outras palavras, o conhecimento que é produzido e negociado nesses ambientes on-line molda as atividades dos trabalhadores a partir de táticas e estratégias, evidenciando que eles não são meros "receptáculos" das plataformas, mas agem a partir de seu cotidiano. A comunicação entre trabalhadores é um fenômeno histórico relacionado ao mundo do trabalho. No entanto, no contexto da plataformização do trabalho, essa comunicação representa um elemento-chave do que Abilio (2020) denomina "gestão da sobrevivência", provando que os trabalhadores não são inorganizáveis. A comunicação auxilia tanto na organização e no controle do trabalho — por exemplo, na produção de dados envolvendo moderação de conteúdo, análise de publicidades, tradução e transcrição de conteúdos — quanto na organização e nas estratégias dos trabalhadores, mostrando como o trabalho em plataformas é um laboratório da luta de classes (Cant, 2019).
Por fim, consideramos que nossa pesquisa reforça a ideia de que os conjuntos de dados que alimentam a IA precisam ser compreendidos no contexto de complexas cadeias globais de trabalho em plataformas. As pesquisas sobre dataficação trazem ganhos em suas análises quando evidenciam as múltiplas camadas que esses sistemas de produção de dados abrangem, especialmente porque esses sistemas, em última análise, moldam os processos automatizados de decisão por meio de IA. Abordar o potencial e a agência da IA sem considerar as condições de produção dos dados e o trabalho de seres humanos por trás disso, sustentamos, representa uma réplica de perspectivas coloniais que descrevem a IA como processo computacional objetivo e de alta tecnologia produzido pelo Norte Global (Ali, 2016).
A produção de dados para a IA não é um processo homogêneo, nem com relação à composição da força de trabalho nem às especificidades das estruturas das plataformas. Como mostra nossa análise exploratória, há mais disputas, conflitos e baixa tecnologia na força de trabalho — nesse caso, brasileira — da indústria de IA do que cabe no discurso dominante das plataformas globais de IA. Não existe um universalismo do trabalho em plataformas nem uma força de trabalho homogênea quanto à heteromação do trabalho nas plataformas de IA (Ekbia e Nardi, 2017). Em vez disso, há a continuidade de um colonialismo por meio da IA que reforça as desigualdades na perspectiva do trabalho plataformizado.
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