Artigos História da comunicação (e do jornalismo):
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Marialva Carlos Barbosa1
1 0000-0003-4953-3492. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. marialvabarbosa@cnpq.br
Recibido: 31/01/2019
Enviado a pares: 26/03/2019
Aprobado por pares: 06/06/2019
Aceptado: 09/08/2019
Para citar este artículo / to reference this article / para citar este artigo: Barbosa, M. C. (2019). História da comunicação (e do jornalismo): pressupostos teóricos e metodológicos. Palabra Clave, 22(4), 1019-1042. DOI: https://doi.org/10.5294/pacla.2019.22.4.2
Resumo Este artigo faz uma reflexão epistemológica sobre a pesquisa historiográfica na área da Comunicação e mostra a importância de se inverter o olhar ao lidar com a documentação produzida pelos próprios meios de comunicação. Assim, o contexto — isto é, a historicidade dos processos comunicacionais — torna-se texto a ser analisado. Para isso, faz um inventário crítico das pesquisas que relacionam Comunicação e História no Brasil, a fim de mostrar as transformações por que passaram nas últimas décadas. Apresenta alguns postulados teóricos e metodológicos indispensáveis nas pesquisas que colocam a questão histórica como centro da problemática. Por último, propõe um caminho metodológico para produzir pesquisas que tomam como pressupostos a especificidade documental a ser analisada e o olhar que se deve lançar ao documento comunicacional para a síntese e a interpretação históricas. Parte-se da ideia central de que as premissas metodológicas devem adotar três níveis de análise — proposições historiográficas, proposições históricas e práticas metodológicas — e apresenta brevemente cenários metodológicos possíveis de serem adotados nos estudos que propõem a interconexão entre Comunicação e História. Palavras chave (Fonte tesauro da Unesco): Historiografia; processos comunicacionais; história da Comunicação; metodologia; pesquisa em comunicação. |
Resumen El artículo hace una reflexión epistemológica acerca de la investigación historiográfica en el área de la Comunicación y evidencia la importancia de invertirse la mirada al tratar con documentos producidos por los propios medios de comunicación. Por lo tanto, el contexto — es decir, la historicidad de los procesos comunicacionales — se vuelve texto a analizarse. Para tal, hace un inventario crítico de las investigaciones que relacionan Comunicación e Historia en Brasil, con el fin de mostrar las transformaciones por las que han pasado en las últimas décadas. Presenta algunos postulados teóricos y metodológicos indispensables en las investigaciones que ponen la cuestión histórica como centro de la problemática. Por fin, plantea un camino metodológico para producir investigaciones que toman como postulados la especificidad documental a analizarse y la mirada que se debe lanzar al documento comunicacional para la síntesis y la interpretación históricas. Se parte de la idea central de que los postulados metodológicos deben adoptar tres niveles de análisis — proposiciones historiográficas, proposiciones históricas y prácticas metodológicas — y presenta brevemente contextos metodológicos posibles de adoptar en estudios que planteen la interconexión entre Comunicación e Historia. Palabras clave (Fuente tesauro de la Unesco): Historiografía; procesos comunicacionales; historia de la comunicación; metodología; investigación en comunicación. |
Abstract This article reflects on historiographic research into communication from an epistemological standpoint and notes the importance of changing perspective when dealing with documents produced by the media. Therefore, the context —i.e., the historicity of communication processes— becomes a text to be analyzed. To this end, a critical inventory of research that relates communication with history in Brazil is compiled to show the transformations it has undergone in the last decades. Some theoretical and methodological assumptions are introduced for research that brings the historical matter into focus. To close, a methodological path is proposed to produce research that takes as postulates the documentary specificity to be discussed and the reading to be done of communication documents for historical synthesis and interpretation purposes. The paper is based on the core idea that methodological postulates should follow three levels of analysis (historiographic propositions, historical propositions, and methodological practices) and briefly presents methodological contexts that may be adopted by studies that suggest the communication-history relationship. Keywords (Source Unesco Thesaurus): Historiography; communication process; history of communications; methodology; communication research. |
Introdução
Quem se aventura no estudo histórico a fim de vislumbrar ações dos homens de um tempo pretérito, sabe que há muitas formas de considerar a História. Pode-se pensar que fazer história é trazer incólume o passado para o presente ou pode-se presumir que é do presente, eivado pelas suas articulações e ingerências nas formas como vivemos a vida, que olhamos o passado e sobre ele produzimos apenas interpretações. Interpretações sempre provisórias, já que o cerne do conhecimento científico está exatamente na superação permanente.
Da mesma forma, há também diversas possibilidades de articularmos Comunicação e História. Podemos considerar, por exemplo, que são sempre os atos comunicacionais dos homens do passado que chegam ao presente como vestígios de sua passagem no mundo. Somente atos comunicacionais produzidos no passado são capazes de permanecer, chegando ao presente e permitindo múltiplas possibilidades interpretativas.
Além disso, há que diferenciar o que denominamos “história da comunicação” de “história dos meios de comunicação”. A história da comunicação engloba, além das mudanças nos meios, outras possibilidades, como as transformações dos sistemas orais, da cultura material comunicacional, confundindo-se com uma história da cultura. Já a história dos meios de comunicação refere-se aos processos históricos que desvelam as transformações sofridas ao longo do tempo, devendo ser pensada como parte de um campo de estudos mais amplo, como uma história da comunicação (Ribeiro e Herschmann, 2008).
No caso latino-americano e no que diz respeito especificamente ao Brasil, observamos a existência de uma extensa bibliografia sobre a história da comunicação, embora possa ser anotada a quase inexistência de obras de síntese. Até 2013, não existia, no país, nenhum livro síntese sobre sua história da comunicação e, em parte, essa ausência foi suprida com a publicação da obra História da Comunicação no Brasil (Barbosa, 2013), que se propunha a seguir o caminho de enfatizar a ação humana envolvida nas transformações comunicacionais.
Ou seja, a história da comunicação presumida naquela abordagem não se refere aos objetos midiáticos, mas aos processos nos quais os homens realizam sua humanidade de maneira múltipla a partir dos contatos com o mundo midiático. Assim, no nosso entendimento, uma história humana no século XXI deve considerar obrigatoriamente o atravessamento dos processos comunicacionais existentes no mundo da vida.
Em resumo, podemos dizer que a abordagem sobre a história da comunicação segue três paradigmas dominantes: no primeiro, incluem-se as pesquisas que destacam como eixo central as relações entre imprensa e política; no segundo, encontram-se aquelas que priorizam as chamadas “histórias culturais da comunicação”; e, finalmente, há as que privilegiam como foco da abordagem as mutações possibilitadas pelas tecnologias.
Em recente pesquisa acerca da produção acadêmica sobre o tema (Barbosa, 2018a), constatamos que, apesar do esforço para produzir algumas sínteses sobre a história da comunicação e do jornalismo, há ainda muito a ser realizado. Observamos uma pulverização extrema dos estudos históricos na área, com abordagens que dizem respeito a um veículo de comunicação, a períodos curtos, sem que haja a preocupação de produzir estudos holísticos, o que se constitui, hoje, num processo mais do que desejável: constitui-se numa emergência de pesquisa.1
No mesmo diagnóstico, observamos o abandono gradual de estudos claramente históricos sobre os meios de comunicação em favor de abordagens de natureza presentista, de tal forma que afirmamos que o olhar comunicacional sobre as teias temporais vislumbra, sempre, o tempo passando (Barbosa, 2017). Consideramos, portanto, como inexpressivos os estudos com dimensão histórica na produção contemporânea dos programas de pós-graduação em Comunicação do Brasil. Só a título de ilustração, apresentamos alguns números: enquanto de 1990 a 2016 foram defendidas 59 teses e dissertações que se referiram especificamente à história da imprensa, se considerarmos apenas três anos, de 2012 a 2015, foram defendidas 136 teses e dissertações na área de Comunicação com referência à palavra “Twitter”, e, de 2013 a 2016, foram desenvolvidas 251 pesquisas com o objeto empírico o Facebook (Barbosa, 2017).
Mas, apesar desse diagnóstico, observamos também uma mudança de rumo nas pesquisas na comunicação que adotam os pressupostos históricos que indicam alguns avanços. O mais importante é, sem dúvida, a emergência, sobretudo na segunda década do século XXI, do que denominamos “olhar histórico”, ou seja, a ação de interpretar temáticas mais contemporâneas utilizando como referencial teórico os paradigmas da história.
Em segundo lugar, observamos também o abandono do que denominamos “visão utilitária da história”, na qual o passado serve como uma espécie de teia de iluminação para os processos observados no presente. Em terceiro lugar, há o decréscimo notável das pesquisas que, apenas por considerar as discursividades dos veículos no passado, julgam estar realizando estudos de natureza histórica, sem abordar, de fato, a historicidade propriamente da imprensa ou do jornalismo. E, por último, há também a diminuição de trabalhos tributários da ideia de história baseada em grandes feitos ou que particulariza a ação de personagens numa perspectiva memorialística (Barbosa, 2018a).
Em síntese, podemos afirmar que, na construção do campo histórico nos estudos da comunicação, hoje, no Brasil, há três paradigmas dominantes. Em primeiro lugar, detecta-se a predominância de interpretações produzidas na própria área, o que indica a prevalência dos parâmetros elaborados pelos pesquisadores de comunicação. Em segundo lugar, observamos a emergência, sobretudo na segunda década do século XXI, do que denominamos “olhar histórico na comunicação”, ou seja, a eclosão de estudos sobre temáticas contemporâneas, mas que se valem do referencial teórico da história e de uma dimensão historiográfica para interpretar processos midiáticos que, assim, são considerados em suas historicidades. E, por último, observa-se o deslocamento do olhar de uma história dos processos para uma história que enfatiza a ação de atores sociais, partilhando uma visão epistemológica de trânsito em direção ao mundo da vida. Parte-se do pressuposto que, se a história é ação humana, são as ações humanas, os sentidos, as experiências, os sentimentos, as emoções que produzem a historicidade dos processos comunicacionais.
A chave para a produção de uma história da comunicação que considere centrais questões de historicidades é percebê-la como um processo sobre o qual se procura vislumbrar as práticas dos atores sociais envolvidos. Assim, na base da análise empírica, deve-se trabalhar com práticas, representações, apropriações, ressignificações produzidas por esses atores. O processo comunicacional diz respeito sempre a um mundo que é representado por alguém, submetido ao movimento histórico, em algum lugar, e que se materializa sob a forma de trocas com um outro (Barbosa e Ribeiro, 2011).
História dos sistemas de comunicação
Pensar a história da comunicação enseja, portanto, inúmeras perspectivas. Desde aquela mais tradicional que procura, na busca desenfreada pela gênese dos processos, o ponto inicial para contar uma história até aquela que temporalmente recorta “momentos axiais” (Ricoeur, 1997) como pontos inflexivos de rupturas nas continuidades históricas.
Há igualmente os estudos que elegem as tipologias midiáticas como possibilidade de recorte narrativo, construindo uma junção de objetos a partir de tecnologias que se aproximam. Pode-se também remontar essa história a partir da singularidade de cada meio e, assim, realizar a história de um jornal (ou de um grupo de jornais), de uma emissora de rádio ou de televisão, por exemplo. A dimensão espacial pode ainda ser fundamental para a abordagem e, dessa forma, elegem-se como material empírico os meios de comunicação encravados em determinadas regiões. Em cada um desses casos, observa-se a busca pelos particularismos, afastando-se das necessárias sínteses interpretativas.
A análise dos meios de comunicação, numa perspectiva histórica, pode adotar, como cenário metodológico, a percepção de que estamos diante de um sistema de comunicação complexo, no qual a dimensão interna e externa dos fenômenos deve ser considerada. Assim, no caso de uma análise da imprensa, por exemplo, além da percepção dos periódicos como parte de um sistema de comunicação que obedece a temporalidades precisas e que se movem numa territorialidade própria (a dimensão externa), os processos midiáticos inerentes a esse sistema (a dimensão interna) também devem ser considerados. Os processos profissionais e as práticas decorrentes da relação dos atores sociais incrustados num cenário histórico (os jornalistas, o público etc.), por exemplo, devem ser desvendados à luz de problemáticas eleitas para a construção da pesquisa.
Perceber o circuito da comunicação (Darnton, 1990) numa história da comunicação torna-se quase obrigatório e, nesse sentido, é fundamental revelar os produtores das mensagens, os processos produtivos, os outros atores sociais, como os leitores, e o caminho que vai da produção do conteúdo até a apropriação das mensagens por um público sempre produtor de significados. Na abordagem em que a história da comunicação transveste-se numa história dos sistemas de comunicação, outras dimensões são igualmente importantes: a concepção de que as textualidades produzidas no passado se referem sempre a um mundo ideal e simbolicamente existente, mas que deixam brechas para a percepção de cenários do mundo como representação; a obrigatoriedade de considerar as fontes discursivas dos meios de comunicação dentro de parâmetros específicos em que se destacam as estratégias de autorreferenciação (Ribeiro, 2006) que a própria mídia produz dela mesmo; e a substituição das abordagens de natureza linear dos períodos em favor da axialidade dos problemas de pesquisa, de tal forma que a história linear é substituída pela marcação de momentos axiais que expressam rupturas fundamentais na produção midiática, mesmo que nunca se deixem de considerar as continuidades históricas.
Nesse sentido, a história da comunicação se transveste numa história dos sistemas de comunicação. A partir desses pressupostos metodológicos, algumas obras de síntese foram produzidas para compreender os processos midiáticos dos séculos XIX e XX no Brasil (Barbosa, 2007; 2010; 2013 e 2018b).
Apenas a título de exemplo, para deixar mais claro como essa metodologia pode ser empregada, fazemos referência à recente pesquisa produzida sobre os jornais manuscritos que circularam no Brasil antes, durante e depois da chegada da impressão, e que revelam a construção de uma importante rede de textos naquilo que denominamos “o longo século XIX” (Barbosa, 2018b).
A descoberta desse acervo peculiar na Biblioteca Nacional do Brasil, com 20 jornais manuscritos, permitiu a presunção da existência desse modo de comunicação no século XIX e que perdurou mesmo depois da explosão da palavra impressa a partir da década de 1820. Esses jornais deixam ver sistemas de comunicação em toda a sua complexidade.
Com tiragens mínimas (a maioria editava um só exemplar), muitos eram satíricos, outros eram críticos, havia ainda os eróticos e os difamadores. De quase a totalidade, só foi produzido (ou foi preservado) apenas um exemplar que podia se multiplicar diante de dezenas de olhares, já que os seus idealizadores, não raramente, fixavam-no em locais públicos.
Se as condições de circulação e produção dificultaram a sobrevivência, também os modos como eram apropriados eram convites à deterioração. Lidos ao ar livre e expostos às intempéries da natureza, lidos em grupo, o que pressupõe um manuseio extensivo, diversas foram as razões para a degradação de cada um dos exemplares. No entanto, muitos sobreviveram e foi isso que permitiu que, como pesquisadores, desvendássemos um mundo em que a ordem manuscrita teve supremacia, mesmo após a circulação de impressos em profusão no território brasileiro (Barbosa, 2018b).
Diante desse material empírico, procuramos desvelar o que eram esses jornais; a forma como eram produzidos e as razões de suas produções; quem eram os produtores desses periódicos classificados muitas vezes como “insólitos jornais”; como eram lidos; quem os lia; com que propósito e que apropriações de sentidos podem ser reveladas a partir de leituras sempre múltiplas e plurais (Barbosa, 2018b). Mas a análise em bloco desses periódicos peculiares revelou também a existência do que denominamos “ordem comunicacional manuscrita”, que, mesmo após a chegada da impressão, no caso brasileiro, a partir de 1808, mostra que os manuscritos não perderam seu posto de escrita dominante e meio de comunicação fundamental na disseminação da palavra pública.
Assim, num primeiro momento, para melhor delimitar o objeto de estudo, até então inteiramente desconhecido na história da comunicação no Brasil, ocupamo-nos minuciosamente da análise desses periódicos que surgiram no século XIX, evidentemente não com a pretensão de recuperar o verdadeiro passado (que de fato não existe), mas com o intuito de ampliar ao máximo o escopo dos jornais manuscritos que circularam no território brasileiro. Nessa análise, consideramos seus aspectos conceituais, isto é, como eram produzidos graficamente, como eram editados, como se configuravam os sistemas de distribuição, quem eram os seus produtores e que estratégias de leitura ensejavam, num complexo entendimento da ordem comunicacional manuscrita.
A partir dessa pesquisa, foi possível mostrar que, na construção de uma arena pública fundamental no Brasil nas primeiras décadas do século XIX, foi imprescindível o desenvolvimento de inúmeras expressões comunicacionais, que ensejavam novas formas de fazer política, sem que as velhas maneiras deixassem de existir. Assim, lado a lado com a imprensa — tecnologia inovadora e expressão mais acabada da modernidade desejada naquele momento —, outras formas de exprimir opiniões, contentamentos ou descontentamentos existiam e em diversas modalidades. Papéis incendiários, manuscritos de todos os tipos, tomavam a cena pública, ao lado das vozes que gritavam a favor da nova ordem ou contra ela.
Assim, no período de formação do espaço público no Brasil, ocorreu a expansão de redes de comunicação, tanto aquelas oriundas das práticas da oralidade quanto as que se desenvolviam na esteira das novas possibilidades de comunicação. Ao lado das expressões verbais e gestuais, que continuaram tendo enorme importância mesmo depois da consolidação da imprensa periódica, havia também as expressões manuscritas, papéis de múltiplas naturezas e que eram tornados públicos com os mais variados propósitos. Numa sociedade caracterizada pela comunicação oral e visual, tais papéis que, na feliz expressão de Marco Morel (2005), “flamejavam nas ruas” foram fundamentais para a construção e a ampliação dos debates públicos, indispensáveis na formação de uma arena política.
O desvendamento da ordem manuscrita mostra não apenas a reprodução de ideias e palavras de ordem no espaço público, mas também a ação de participar do desejo de jornalismo que existia na sociedade. Assim, muitos editavam os jornais manuscritos como uma espécie de arremedo dos signos tecnológicos da imprensa de grande circulação: as mesmas seções; a reprodução dos parâmetros narrativos e, sobretudo, a cópia que desejava ser fiel aos processos gráficos e editoriais. Dessa forma, era necessário, por exemplo, reproduzir as letras manuscritas como decalques da tipologia impressa, repetindo, em letras cuidadosamente elaboradas, o formato dos jornais que circulavam naquela sociedade.
Do ponto de vista das razões da sua existência e permanência no longo século XIX, essas também podem ser das mais variadas ordens. Podia ser o meio mais eficaz para conclamar o público a incendiar o espaço público, já que eram lidos em lugares de grande ajuntamento de pessoas (casas comerciais, praças etc.) e fixados nos muros e fachadas das principais lojas das cidades, além das portas das sedes de alguns desses jornais. Podia também ser mera expressão literária, ensaio em direção à literatura, quando, nos manuscritos, se exercitava a verve criativa, tornando-se espécies de balão de ensaio em direção ao mundo literário. Podia ainda ser de válvula de escape quando se viam privados da liberdade. E, por fim, podiam expressar o desejo de fazer jornalismo copiando os modos mais desenvolvidos do ponto de vista da expressão editorial da imprensa daquele momento. Eram, enfim, jornais de políticos, de literatos, de estudantes, de comerciantes, de líderes e de jovens de tenra idade, como foi, por exemplo, o caso do escritor Raul Pompéia, que, com apenas 10 anos, produziu o seu jornal manuscrito O Archote.
Toda essa página esquecida da história da comunicação no Brasil ganha, portanto, densidade teórica e conceitual quando se considera que cada um desses periódicos durante todo o século XIX constitui uma rede de textos que se espalha por todas as regiões, o que permitiu a fixação e a permanência de uma ordem comunicacional manuscrita que avança em direção ao século XX.
Como material empírico privilegiado para essas interpretações, usaramse os próprios jornais manuscritos. Isso nos leva obrigatoriamente a refletir sobre que olhar específico sobre o documento se deve ter quando este é, ao mesmo tempo, fonte e objeto de pesquisa. Que especificidades possuem a imprensa como fonte de pesquisa para a construção da própria história do jornalismo?
Um olhar sobre o documento
Diversas problemáticas devem ser consideradas quando a pesquisa envolve prioritariamente a análise documental. Alvo de inúmeras críticas, em função da intencionalidade com que é, na maioria das vezes, produzido, o documento já foi chamado de “monumento” (Le Goff, 1984), numa alusão à monumentalidade que produz em relação a determinados temas que são deixados para ser o passado do futuro; já foi considerado como discurso prioritário dos dominantes, levando os historiadores a procurarem diversas tipologias de fontes para além da documentação, como, por exemplo, o uso de fontes orais, sobretudo quando os períodos considerados eram mais próximos do tempo de vivência do historiador; entre outras críticas produzidas por diversas escolas históricas.
Um olhar crítico sobre o documento, portanto, é ponto de partida de qualquer análise histórica. Entre uma profusão de fontes documentais, por exemplo, há que se considerar, em primeiro lugar, a especificidade dos documentos que se têm diante dos olhos e as funções originais para os quais foram produzidos.
Assim, usar a imprensa como fonte para sua própria história requer alguns cuidados suplementares, que coloca, no centro da reflexão, a questão da intencionalidade. Marcar, no conjunto de fontes, aquele periódico como emblema de uma época, considerar que, por exemplo, poderia estar produzindo uma memória partilhada, são apenas dois cuidados possíveis que permitem descortinar que imagem interessava ao próprio meio de comunicação construir sobre si mesmo.
Considerando que a história não é a ressurreição intacta do passado, mas apenas uma interpretação possível, os arquivos passam a ser documentação a partir do momento em que o próprio historiador o classifica como tal, abrindo espaço para possíveis conclusões com base em vestígios que chegam até o presente. Como enfatiza Arlette Farge (2009), “o sabor do arquivo passa por este gesto artesão, lento e pouco rentável, em que se copiam textos, pedaço por pedaço, sem transformar sua forma, sua ortografia, ou mesmo sua pontuação” (p. 23). Mas é preciso também tentar recuperar a produção de sentido daquele texto que, no passado, possuía outras intencionalidades.
No ato de pesquisar, há, por outro lado, a atitude de, ao mesmo tempo, aprisionar e se despojar dos documentos. De uma série, recolhe-se um certo número e sobre o que fica se realiza uma nova arrumação, uma operação de classificação que tenta construir sentido, a partir de um olhar específico, sobre um mundo que sempre se apresenta aos olhos do pesquisador de maneira fragmentada. Produz-se, a rigor, o reordenamento das representações presentes nas textualidades, sendo possível considerar, portanto, antes de tudo, os documentos como índices de reconhecimento de um tempo e de um mundo. Quando esses textos são visualizados, encontramse os múltiplos diálogos fixados na prisão da palavra impressa.
Indo aos arquivos e aos documentos para desvendar, numa história da comunicação, os múltiplos processos comunicacionais, parte-se da premissa interpretativa, e não apenas se observa o que foi guardado na imobilidade, apenas em aparência, transparente daquelas fontes. O ato de torná-las novamente presentes faz delas uma experiência viva e comunicativa, na qual o pesquisador também se inclui.
A utilização dos arquivos obriga, também, a refletir sobre o que usualmente denominamos “fontes”. Em princípio, podemos considerar fontes os rastros produzidos pela passagem dos homens do passado. Esses rastros assumem as mais diversas formas: a cultura material e a documentação variada que produziram, voluntariamente ou não. São vestígios que indicam que houve um passado e que nele foram gerados atos comunicacionais que permaneceram como rastros ou como restos, como indícios ou materialidades do passado. Minerais, escritas, sonoras, fotográficas, audiovisuais e virtuais, as fontes vão adquirindo a materialidade das tecnologias comunicacionais que dominam as épocas e, como tal, são deixadas para um historiador que, no futuro, de maneira consciente, deliberada e justificada, procurará interpretá-las e, assim, reconstruir uma sequência particular do passado. A análise que o historiador produz significa restituí-la a seus contemporâneos sob a forma de uma narrativa, ou seja, de uma escrita dotada de coerência interna e repleta da inteligibilidade científica (Rousso, 1996, p. 2).
Há que se distinguir as particularidades que podem ser demarcadas entre o que denominamos “rastros” e o que consideramos “restos”. Podemos entender a noção de rastro a partir da tradição filosófica ocidental, tanto da filosofia socrática platônica quanto da aristotélica. No primeiro caso, centrado na representação presente da coisa ausente e, no segundo, baseado na suposição da representação de uma coisa percebida anteriormente e que apreendida induz à construção de uma imagem em relação ao rastro-lembrança (Ricoeur, 2007, p. 27). Ricoeur sustenta também que toda a problemática do rastro, da Antiguidade aos nossos dias, é herdeira da noção antiga de impressão, mas que, longe de resolver o enigma da presença da ausência, acrescenta um outro enigma que lhe é próprio (Ricoeur, 2007, p. 425).
Assim, o filósofo distingue três espécies de rastros: o rastro escrito, que, pela operação historiográfica, se torna rastro documental; o rastro psíquico, ao qual prefere chamar de impressão, no sentido de afecção, deixada em cada um por um acontecimento marcante e que, como tal, imprime internamente uma marca; e, por fim, o rastro cerebral, tratado pelas neurociências. O rastro documental, assinala o autor, pode ser alterado fisicamente, apagado, destruído, e foi exatamente contra essas ameaças de apagamento que se instituiu o arquivo (Ricoeur, 2007, p. 425).
O rastro material/documental é, portanto, algo que foi voluntária ou involuntariamente guardado e que prova a existência do passado, ensejando a qualidade daquilo que figura como representação dos tempos idos, possuindo a positividade de representá-lo e de ser reconhecido como possibilidade de instaurar uma espécie de aura de um tempo que poderia ter sido irremediavelmente perdido. Já o resto pode ser compreendido como vestígio, ou seja, uma mensagem em referência ao passado e que, no presente, pode revelar algo sobre esse passado. Ao resto, é atribuído um valor e é dessa forma que se transforma em algo significativo, que pode adquirir a qualidade de documento (Heller, 1993, pp. 102-103). Os restos, portanto, são as mensagens e sinais que existem no presente de maneira multifacetada e que, como numa espécie de quebra-cabeça, permitem a junção de peças desconexas (restos), que constroem uma trilha de rastros. O resto é o indício da mensagem a quem é dada uma significação, transformando-se em rastro material, ou seja, adquirindo a qualidade de documento.
Assim, é possível fazer uma distinção entre rastro e resto. Enquanto o rastro mantém indicialidade em relação ao passado, sendo prova viva da sua existência, já que permaneceu, o resto é presença sem conexão imediata com os tempos idos. O resto necessita da intervenção de alguém que veja nele a qualidade de vestígio — isto é, de ser percebido como algo significante no presente —, restituindo-lhe a possibilidade de ser rastro. Só nessa condição podemos segui-lo do presente em direção ao passado.
É preciso sublinhar ainda que as fontes não existem em essência nem são dotadas de neutralidade capaz de espelhar verdades sobre o passado. Os vestígios desse passado, sejam eles um testemunho, sejam um documento, só se transformam em fontes históricas quando o pesquisador lhes atribui essa qualificação. Nesse sentido, pode-se concordar com a premissa expressa por Henri Rousso (1996, p. 3) de que toda fonte é “inventada”. Da mesma forma, é preciso enfatizar que as fontes não são dotadas de questões intrínsecas, dependendo sempre das teias interpretativas que lhes são lançadas, a partir de perguntas que são formuladas pelos pesquisadores. A fonte não existe fora da pergunta e do olhar do historiador.
Quando se utilizam os próprios meios de comunicação como fontes privilegiadas para a construção de uma história da comunicação, deve-se ter outros cuidados suplementares. O primeiro deles diz respeito à intencionalidade da produção daquele documento. Ao construir um calidoscópio de um presente baseado na escolha intencional de traços do mundo, a imprensa, por exemplo, produz seus textos também com vistas ao futuro, ou seja, ao seu reconhecimento como fonte histórica.
Em segundo lugar, há que se considerar que a imprensa faz inúmeros gestos no sentido de referendar sua própria história ao relembrar de maneira intermitente, em datas comemorativas ou não, os traços de um passado, normalmente qualificado como glorioso. Nessa discursividade, se, por um lado, podem idealizar sua própria trajetória, por outro revelam estratégias de autorreferenciação importantes na sua própria construção histórica. São imagens sobre si mesmo que deixam ver os traços de significação autoinstituído no passado sobre a empresa que, nesse movimento, se torna uma instituição: a imprensa.
Outra questão fundamental diz respeito à relação texto e contexto, importante para a definição dos cenários metodológicos. Numa história da imprensa, por exemplo, o contexto que está sob o foco é o cenário midiático articulado com o mundo social. Não são fatias do social, do econômico e do cultural, como instâncias separadas e dotadas de explicação histórica, que interessam para montar o cenário contextual, mas os processos de comunicação que definem e particularizam as especificidades daquele tempo histórico. Nesse cenário, os meios de comunicação ocupam lugar central e estabelecer vínculos das relações entre texto e contexto se configura como o maior desafio.
Outros cenários metodológicos
Partindo da ideia central de que as premissas metodológicas podem ser descortinadas em três níveis de análise — as proposições historiográficas, as proposições históricas e as práticas peculiares adotadas —, apresentamos brevemente outros cenários metodológicos possíveis de serem adotados nos estudos que estabelecem a interconexão entre Comunicação e História.
O primeiro deles mostra, do ponto de vista das proposições historiográficas, a percepção do passado como ruínas passíveis de serem interpretadas. Nesse sentido, o passado é uma possibilidade a partir dos rastros e dos vestígios de um tempo que se esfacela, mas que chega como indícios ao pesquisador do presente. Diante do espanto em relação a um momento da história marcado pelo inominável, resta ao pesquisador compreender as teias de significações desse mundo estranho e que não promete mais nenhuma redenção futura.
Outra proposição historiográfica que pode emergir dos estudos que fazem das teorias da história central para a construção de pesquisas no âmbito da comunicação é aquela que produz a articulação indispensável entre temporalidade e narratividade, transformando a questão do tempo na demarcação essencial para a definição do início da história a ser contada e a problemática da narrativa como trânsito identitário da história. Claramente herdeira das reflexões de Paul Ricoeur, essa dimensão historiográfica considera, como premissa fundamental, o caráter eminentemente temporal da experiência humana, transformando a obra histórica numa narrativa que apresenta um mundo sempre temporal.
A problemática das processualidades históricas como impensáveis à produção de interpretações sobre o passado também é outra configuração teórica importante e que deve ser incessantemente buscada, pois só assim se pode considerar o trânsito entre as rupturas e as continuidades. Visualizar a história na sua dimensão processual abre possibilidades para a produção do que podemos denominar trânsitos interpretativos do presente em direção ao passado e vice-e-versa. Nessa visão processual, busca-se incessantemente pelos contextos.
Há também que se destacar a necessidade de considerar o passado como possibilidade de interpretação subjetiva. Assim, o passado não é visto como lugar possível de ser acessado e sobre o qual se pode produzir uma totalidade interpretativa verdadeira, mas, ao contrário, é visualizado como “tempos idos” (Heller, 1993), lugar que é completado pela imaginação historiadora e produto da interpretação de um historiador que conta uma história, considerando-se as possibilidades do grau de consciência histórica do tempo de vivência do próprio pesquisador.
Dessas posições historiográficas, emergem escolhas que fazem com que determinados conceitos se tornem fundamentais: circuitos e travessias comunicacionais; semantização do tempo e camadas temporais; retórica e vozes do passado, são alguns deles.
Pode-se tomar, por exemplo, a ideia de trânsito e a de camadas temporais como fundamento central; assim, há a possibilidade de se presumir o movimento entre temporalidades do passado ao presente; de um passado que não existe em essência e não serve para iluminar o presente. O que se destaca, portanto, são os fluxos de continuidades — que pressupõem também as rupturas — que são construídos nessa história peculiar, que pode incluir o contemporâneo explicitamente na sua trama temporal. O tempo narrativo das durações, semantizados em apropriações narrativas, faz com que se acople à noção de temporalidade o conceito de experiência, trajetória, camadas, duração, hiato etc. Estabelecendo trânsitos entre os tempos idos e o mundo contemporâneo, é possível refletir, por exemplo, sobre a construção de retóricas de modernidades em torno de personagens e de acontecimentos sínteses de um movimento histórico mais amplo.
Do ponto de vista das proposições práticas, as pesquisas podem fazer uso de um extenso ferramental metodológico, destacando-se as entrevistas que utilizam, sobretudo, as técnicas recomendadas no âmbito da história oral2. Assim, a partir dos trabalhos de memória dos entrevistados, procura-se encontrar vivências, sensações e registros afetados pelo presente, de forma a descortinar o passado e partir de uma multiplicidade de olhares interpretativos. É preciso considerar, nas entrevistas, duas questões suplementares: a subjetividade do entrevistado e, sobretudo, o lugar de onde fala, já que os atores sociais sempre lembram a partir de um lugar (pessoal, profissional etc.), enquadrando sua própria memória (Pollak, 1989). Já o pesquisador deve relacionar os movimentos de ouvir o outro com a dinâmica da história, contextualizando os vários tempos e considerando a historicidade dos grupos estudados e dos processos envolvidos e os espaços de análise como lugares de consensos e de conflitos, de subordinação e resistência. A práxis interpretativa percebe também o discurso do outro como saber partilhado e marcado pela tradição, pela cultura e pelas conjunturas. Não há verdade essencialista nos sentidos que são expressos, seja nas articulações textuais, seja nas articulações memoráveis.
Mas, sem dúvida, o grande manancial empírico de quem se aventura na seara da história da comunicação está nas fontes documentais, nas quais a própria produção midiática se constitui no material central de análise, conforme já assinalamos. Esse material empírico deve ser acionado a partir de parâmetros teóricos e metodológicos que considerem as inúmeras ingerências presentes na tipologia documental.
O terceiro conjunto de ferramentas acionado pelas pesquisas históricas sobre comunicação são os testemunhos presentes nos textos memorialísticos produzidos por atores centrais no movimento histórico dos meios de comunicação, a maioria de natureza biográfica. Evidentemente, a perspectiva do biografismo deve ser acionada a partir de cuidados teóricos.
A revisão epistemológica por que passou a adoção da biografia como fonte na historiografia moderna, recusando a perspectiva da história dos vencedores (os grandes homens e seus grandes feitos) em favor de uma história dos vencidos — que amplia não apenas seus objetos, mas também seus problemas e suas abordagens3 —, não significou o abandono dessa perspectiva nas análises históricas.
Utilizar criticamente a perspectiva do biografismo significa, em primeiro lugar, afastar-se daquilo que Pierre Bourdieu denomina “ilusão biográfica”, ou seja, a presunção de que “a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma intenção subjetiva e objetiva, de um projeto” (Bourdieu, 2006, p. 184). É preciso estar atento ao percurso que se tenta produzir, selecionando elementos significativos, em detrimento de outros que devem ser encobertos, e estabelecendo nexos entre aqueles que definem um ser individual, que é sempre social. A produção de uma vida como história, construindo um relato coerente de uma sequência de acontecimentos é, em suma, conformar-se “com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar” (Bourdieu, 2006, pp. 184-185).
Alguns estudos na área da comunicação que fazem da perspectiva histórica mola mestra para a análise utilizam criticamente a perspectiva do biografismo (Sacramento, 2012), constroem biografias que exploram a multiplicidade do indivíduo, de forma a se desfazer da “ilusão biográfica”, com o objetivo de mostrar a diversidade e a fragmentação inerentes ao ser humano.
Evidentemente, outros cenários metodológicos poderiam ainda ser referenciados. Entretanto, limitamo-nos a esses apontamentos por considerar que essas perspectivas fornecem referenciais teóricos e metodológicos importantes para a construção de uma história da comunicação atrelada às questões que também emergem do tempo presente.
Conclusões
As reflexões alinhadas neste artigo são resultado da observação sistemática realizada há algumas décadas sobre a produção científica da história da comunicação, sobretudo, no Brasil, lançando um olhar crítico sobre os pressupostos teóricos e metodológicos escolhidos no sentido de aperfeiçoar os estudos da área.
Carentes de obras de síntese que forneçam interpretações mais abrangentes dos fenômenos comunicacionais localizados no passado, as pesquisas em história da comunicação nos últimos anos, por outro lado, vêm passado por um processo inovador que deixa antever a adoção dos pressupostos teóricos da história em diversos estudos da área de comunicação, o que faz de alguns conceitos basilares fundamentos essenciais para explicar os fenômenos mesmo os mais contemporâneos.
Se essa constatação permite vislumbrar um trânsito inovador do ponto de vista teórico e metodológico para os estudos da comunicação, por outro lado, observa-se, cada vez mais, o abandono das perspectivas que fazem, dos tempos idos, elementos essenciais para uma reflexão, em sentido restrito, da história da comunicação.
A dimensão histórica do passado tem sido, sobretudo nos últimos anos, relegada a um silêncio duradouro. Elegendo-se o presente como tempo basilar das pesquisas da área, os fenômenos históricos são esquecidos e figuram cada vez menos como preocupação dos pesquisadores. Com isso, as interpretações de uma história da comunicação ficam reféns de análises ultrapassadas, que não dão conta da complexidade e das articulações fundamentais de contextualização dos fenômenos do passado, que devem ser objetos de permanentes revisões interpretativas.
Reféns também dos particularismos, as pesquisas carecem de uma dimensão de síntese interpretativa em que os fenômenos históricos possam ser considerados de maneira articulada em múltiplos territórios e em longos períodos, de forma a que as continuidades fundamentais para as análises figurem nas proposições de pesquisa. Hoje, a produção sobre a história da comunicação (e do jornalismo) no Brasil caracteriza-se, sobretudo, pela fragmentação.
Ao lado desse diagnóstico, procuramos também apresentar alguns fundamentos teóricos e metodológicos que consideramos importantes para a realização de pesquisas da história da comunicação, ou melhor, dos meios de comunicação.
Considerando em primeiro lugar que a análise histórica dos meios de comunicação deve enfatizar as ações humanas do passado e a percepção da comunicação dentro de um sistema, propomos como centro reflexivo algumas questões que consideramos basilares: a análise dos circuitos de comunicação; a introdução do contexto comunicacional como cerne empírico das pesquisas; o estabelecimento da relação entre texto e contexto comunicacional; o deslocamento do olhar sobre as textualidades em favor das contextualizações dos processos comunicacionais; a visão processual, de forma a perceber rupturas e continuidades; e um olhar particular sobre o documento comunicacional como objeto e, ao mesmo tempo, fonte empírica da pesquisa.
Para melhor contextualizar as premissas teóricas e metodológicas apresentadas, descrevemos rapidamente os resultados dos estudos que realizamos sobre os jornais manuscritos que circularam como uma rede de textos no que denominamos “o longo século XIX”. Mais do que exemplificar as proposições metodológicas escolhidas, a descrição de alguns processos executados nesta pesquisa deixa evidentes as premissas escolhidas para o desenvolvimento das análises.
A suposição de que a história da comunicação está contida na própria produção dos meios de comunicação enseja, por outro lado, princípios basilares em torno da questão do documento. Fonte e objeto de pesquisa, na produção midiática, estão sempre contidas múltiplas intencionalidades e a produção de uma textualidade que atravessa os tempos. Produzida num presente absoluto, recorre muitas vezes ao passado iluminador de suas ações, e os meios de comunicação têm como intencionalidade ser documentos para o futuro. Essa tridimensionalidade temporal obriga a inclusão de outras reflexões teóricas em relação ao uso das textualidades midiáticas como fontes para a construção de múltiplas interpretações, sempre provisórias, e que podem fornecer alguns elementos para se escrever uma história da comunicação.
Notas
1 Para dimensionar melhor esse contexto, apresentamos alguns números: no Brasil, há apenas três obras de síntese sobre a história da imprensa (Sodré, 1996; Barbosa, 2007 e Barbosa, 2010) e apenas uma obra de síntese sobre a história da comunicação (Barbosa, 2013). E, das 91 teses e dissertações produzidas no país de 1990 a 2016, na área de Comunicação, apenas 11 podem ser consideradas obras de síntese histórica (Barbosa, 2018a).
2 Sobre história oral, ler mais em Ferreira e Amado (2006), Ferreira, Fernandes e Alberti (2000), Portelli (2000), entre outros.
3 Estamos aqui fazendo referência à coletânea clássica organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, publicada originalmente na França, em 1974, com o título Faire de l’historie.
Referências
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